Alguns apontamentos do Prof. Victora* sobre ALEITAMENTO MATERNO
no Prefácio da 4a. edição do livro
AMAMENTAÇÃO – bases científicas
Recentemente estive envolvido em uma ampla revisão sobre o aleitamento materno. Ao revirar minhas coleções de livros e separatas sobre o tema, iniciada nos anos 1970 (quando os arquivos em formato PDF estavam longe de existir), encontrei uma publicação clássica da Organização Mundial da Saúde, intitulada: Contemporary Patterns of Breastfeeding. Esse foi o primeiro estudo realizado em vários países sobre a descrição dos padrões de aleitamento em diferentes grupos populacionais. Seu organizador foi o pediatra sueco Bo Vahlquist, que faleceu antes da publicação do volume. Vahlquist inicia o seu prefácio com uma frase memorável: “Para todos os mamíferos, o ciclo reprodutivo inclui tanto a gestação quanto a amamentação; na ausência dessa, nenhuma espécie – nem sequer a humanidade – teria sobrevivido”. Incorporei a frase de Vahlquist no primeiro de uma série de dois artigos que publicamos recentemente na revista The Lancet. Nenhuma sociedade preconiza substituir o útero materno por um útero mecânico ou artificial, mas por outro lado usar fórmulas industrializadas em substituição ao leite materno se tornou rotina em grande parte do mundo. Essa prática resulta de uma profunda ignorância a respeito do diálogo biológico entre mãe e criança, que se inicia no útero e se prolonga durante os primeiros anos de vida por meio da amamentação.
Amamentação | Bases Científicas chega a sua quarta edição ocupando um lugar especial na biblioteca de todo profissional envolvido no cuidado de mães e crianças. Escrito por um amplo e competente grupo de pesquisadores e profissionais de saúde, sob a coordenação de
Cristiane F. Gomes e
Marcus Renato de Carvalho,
o livro cobre todas as áreas essenciais que dizem respeito à amamentação: da biologia às políticas públicas, passando por uma série de capítulos de natureza essencialmente prática, de enorme utilidade para os profissionais envolvidos na promoção e no apoio ao aleitamento. Noto com satisfação a ênfase dedicada nesta quarta edição ao recém-nascido prematuro. A prematuridade, epidemia que assola nosso país, relacionada em grande parte à medicalização excessiva do parto, merece um cuidado especial dos profissionais de saúde para garantir o sucesso do aleitamento. O diálogo biológico a que me refiro acima é ainda mais importante para os prematuros, devido à capacidade de suas mães de produzir um leite especialmente formulado para essas crianças.
Termino este prefácio com três pensamentos.
O primeiro é que deveríamos deixar de falar em “benefícios da amamentação” e passar a mencionar sistematicamente os “riscos de não amamentar”. A amamentação é a norma de todas as espécies de mamíferos, e, portanto, devemos definir a ausência de amamentação como a anormalidade, ou seja, como o grupo de risco. Por exemplo, amamentar não aumenta a inteligência; de fato, não amamentar diminui a inteligência.
O segundo é que nosso nível de conhecimento sobre o aleitamento materno – tanto a composição do leite materno como o ato de amamentar em si – é ainda muito limitado. Os excelentes capítulos da Parte 1 do livro resumem o que atualmente se conhece sobre o tema, mas áreas de ponta na pesquisa básica fornecem a cada dia novas evidências sobre o diálogo biológico já mencionado. Amamentar tem efeitos epigenéticos e define o microbioma o recém-nascido, gerando efeitos permanentes sobre a saúde do indivíduo amamentado. O leite humano contém células-tronco, lisossomos, micro RNA, e muitos outros componentes sobre os quais ainda pouco se conhece – mas que certamente têm um papel importante para a criança. Em uma frase muito feliz, meu colega Simon Murch, coautor da série Lancet, afirmou que: “o leite materno é não apenas um aporte nutricional perfeitamente adaptado para o recém-nascido, mas também a mais sofisticada medicina personalizada que ele ou ela irá receber durante toda sua vida. ”
Terceiro, o livro enfatiza o papel essencial da sociedade em proteger, promover e apoiar o aleitamento, por meio de políticas públicas, de práticas dos serviços de saúde, de locais de trabalho favoráveis, da sociedade civil e do engajamento da população como um todo. Não é justo colocar a responsabilidade sobre a mulher, pois, sim um amplo apoio social, as tentativas de amamentar são frequentemente frustrantes.
Essa proposta está de acordo com o pensamento progressista sobre promoção da saúde: em vez de colocar a responsabilidade sobre indivíduos, entender o contexto social, cultural, ambiental, econômico e político que favorece a adoção e a prática de comportamentos saudáveis.
Finalmente, parabéns aos organizadores e colaboradores pelo sucesso obtido pelas edições anteriores, o qual será certamente repetido nesta nova edição.
*Cesar Victora é Professor na Universidade Federal de Pelotas