Como vencer o medo de não produzir
leite suficiente?
Por Gabrielle Gimenez – Editora especial do aleitamento.com
A sensação de produzir pouco leite é uma das causas mais comuns relatadas pelas mulheres ao redor do mundo para justificar a introdução da fórmula ou o abandono completo da amamentação. Embora não exista uma proporção exata, há uma estimativa de que 95% das mulheres estejam plenamente aptas para amamentar do ponto de vista biológico. No entanto, apenas 40% dos bebês do planeta são amamentados de forma exclusiva.
Se voltarmos a olhar os números, não precisamos ser gênios em matemática para perceber que eles não batem. Mas o que isso significa? Será que essa sensação é verdadeira e estamos diante de uma epidemia de baixa produção de leite?
As mulheres dos últimos dois séculos sofreram alguma mutação genética?
Lembramos que a amamentação nos seres humanos não é puramente instintiva. Embora seja um processo fisiológico, também sofre forte influência de fatores socioculturais. Então se a questão da baixa produção de leite generalizada não tem origem biológica, só pode ter uma explicação cultural. Dentre as grandes influências na nossa cultura (não descartando a existência de outras) está a presença da indústria, que associada aos avanços científicos e técnicas de marketing agressivo, foi ganhando protagonismo e virando o jogo a seu favor, a ponto de transformar o aleitamento artificial em regra e a amamentação na exceção. A indústria foi e é responsável por manter muitos mitos vigentes hoje, que repercutem diretamente nos índices de amamentação.
O marketing das fórmulas infantis
Em uma das imagens acima, vemos uma propaganda da Nestlé que introduz o seu discurso publicitário com o seguinte argumento: “Se faltar ou não for suficiente o leite materno…”, dando por sentado que esta é uma situação corriqueira, que pode ser facilmente solucionada pelo seu novo lançamento. A enfermeira e aconselhadora em amamentação Celina Valderez comenta a respeito: “Propaganda de 1944, publicada na revista ‘Pediatria Prática’. Por décadas, a indústria de fórmulas infantis concentrou sua atenção nos profissionais. Nota-se até hoje que o investimento ‘valeu a pena’… para a indústria! Aos poucos a ‘cultura de amamentação’, passada de mãe para filha, foi sendo substituída pela ‘moderna’ fórmula. E as dicas preciosas, o olhar atento e cúmplice entre gerações, foi se perdendo…”. É importante ressaltar que por um longo período a indústria promoveu seus produtos sem nenhum tipo de controle legal ou comprovação científica da sua propaganda.
Mas por que o foco ainda hoje continua sendo o profissional da saúde? O pediatra, IBCLC e editor deste portal, Marcus Renato de Carvalho, explica: “Uma das principais táticas de promoção comercial em vigor atualmente é a busca de parceria com o pediatra, em quem a nutriz deposita confiança. Esse profissional, em última instância, é quem prescreve o produto, ‘autorizando’ o desmame precoce”. A indústria utiliza uma brecha da lei existente para se aproximar do profissional oferecendo material supostamente científico sobre os seus produtos, além de patrocinar eventos e programas de formação das diferentes associações médicas e profissionais.
Além da ausência de boa assistência oportuna à amamentação pelos profissionais, a falta de apoio social é outro fator mencionado pelas evidências como preditores da sensação de não produzir leite suficiente, entre outros problemas na amamentação, segundo vemos pelo modelo da imagem acima. Nesse contexto, tal sensação é motivada pela alta demanda do bebê ou pelo seu choro constante, pela ausência da sensação de peitos cheios ou a não visualização do leite jorrando pelo mamilo. O que leva a mãe a pensar que talvez sua produção de leite seja insuficiente ou que seu leite seja fraco. Essa dúvida pode ser reforçada pelos comentários ao seu redor. Então começa um processo com a introdução de mamadeiras de fórmula para calar o “choro de fome” que conduzem a um efeito bola de neve de problemas na amamentação.
Quanto a esse aspecto precisamos ter em conta que:
– Os bebês não nascem com um comportamento previsível como alguns pensam: mamadas de 3 em 3h durante o dia, com sonecas nos intervalos e sono prolongado durante a noite. Pais que possuem esta expectativa podem se sentir bastante desorientados com a chegada do bebê e achar que há algo de errado com a sua alta demanda dia e noite no início da vida, quando na verdade ela é perfeitamente normal e esperada. Nascemos extremamente dependentes de cuidados.
– Amamentar em livre demanda, sempre que o bebê quiser e pelo tempo que ele precisar, com uma boa técnica (pega e posição corretas), é a melhor forma de manter uma produção de leite adequada e o bebê calmo e satisfeito. Quanto mais o bebê mamar, mais leite será produzido. Conhecer os sinais precoces de fome evita choro desnecessário e um bebê nervoso no peito. Choro é sinal tardio de fome. Alguns dos sinais prévios são: acordar, se mexer, mover a cabeça de um lado para o outro com movimento de busca, emitir sons e resmungos, abrir a boca, colocar a língua para fora, chupar as mãos. Com o bebê alerta e tranquilo fica mais fácil se posicionar bem, acertar a pega e manter uma mamada tranquila e efetiva. O colo também pode e deve ser oferecido em livre demanda, pois longe de deixar o bebê mal acostumado, na verdade o acalma, ao suprir sua necessidade inata de contato físico.
– Conhecer os sinais de que a ingestão de leite por mamada está sendo adequada, ajuda a reforçar a certeza de que o bebê não chora apenas por fome, mas para se comunicar. Choro é comunicação. Portanto, choro do bebê, irritabilidade e demanda frequente não são critérios confiáveis para justificar uma produção insuficiente ou a recomendação de fórmula. Alguns dos sinais de transferência efetiva de leite são: sucção ritmada e profunda, com pausas para respiração e deglutição, especialmente no início da mamada, bebê que solta o peito sozinho, demonstrando relaxamento depois de mamar, urina abundante e clarinha, presença de evacuação diária ao longo do primeiro mês e ganho de peso.
– A sucção tem um efeito calmante sobre o bebê, por isso o peito muitas vezes vai acalmar o choro, mesmo que a motivação inicial não fosse fome. Bebês não mamam somente para encher a barriga. A sucção não nutritiva (o que nossa cultura chama erroneamente de “chupetar” o peito) é parte do comportamento normal do bebê, importante para o seu desenvolvimento e estabelecimento do apego seguro. Amamentação é relacionamento, ferramenta para construção e fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê, um processo mais amplo com repercussões na saúde física e emocional de ambos
– Nem sempre o leite que produzimos será visível. Nem o volume extraído será correspondente à nossa capacidade real de produção. É preciso confiar no mecanismo da amamentação, na sua fisiologia que equilibra a oferta materna e a demanda do bebê, que nos acompanha desde o surgimento da humanidade e que nos trouxe até aqui. Nossa autoconfiança e tranquilidade permitirão que os hormônios envolvidos na amamentação atuem de forma eficaz, sem empecilhos.
O acesso à boa informação poderá nos ajudar a superar o medo de não produzir leite suficiente, identificar abordagens profissionais inadequadas e a resistir à pressão do contexto pela falta de conhecimento sobre amamentação e desenvolvimento infantil.
Figura 2 (Extraído de Pérez-Escamilla et al, 2019. Tradução: Gabrielle Gimenez)
Referência:
Rafael Pérez-Escamilla, Gabriela S Buccini, Sofia Segura-Pérez, Ellen Piwoz, Perspective: Should Exclusive Breastfeeding Still Be Recommended for 6 Months?, Advances in Nutrition, Volume 10, Issue 6, November 2019, Pages 931–943, https://doi.org/10.1093/advances/nmz039 .