Cólicas do Lactante
Colic in infants
Jayme Murahovschi*
O tema os pediatras conhecem. Há mais de um século. Todo pediatra que acompanha crianças no ambulatório tem uma opinião sobre a causa e tem sua conduta, mas, no fundo, tem muitas dúvidas, que não foram elucidadas nesse tempo todo. Talvez porque o problema tenha sido subestimado, apesar de ser queixa extremamente freqüentede causar grande ansiedade nos pais, familiares e ao próprio pediatra. Este não tem como comprovar suas próprias suposições porque não existem estudos organizados. O que existe são pesquisas fracionadas, cujos resultados lembram a história dos cegos que foram apalpar o elefante – cada um saiu com uma idéia parcial na certeza de ter conhecido o todo.
È por isso que o estudo de coorte de Saavedra e colaboradores é muito bem – vindo. É criativo num tema que parece rotineiro, tem sólidas bases epidemiológicas em um assunto em que predomina a opinião pessoal e sobram os problemas metodológicos.
Consultamos três livros de texto, dois nacionais e um clássico americano traduzido.
No livro do Instituto da Criança SP, a experiente pediatra Helda A. O. Penna admite que as cólicas sejam devidas a incoordenação do sistema nervoso autônomo ou constituição neuropática ou hipertônica, e que a origem mais freqüente é emocional do que primariamente gastrintestinal.
O livro editado pelo grupo da Escola Paulista de Medicina apresenta um enfoque psicanalítico, em que as cólicas são indicadoras do desajuste no relacionamento mãe-bebê, sendo o corpo utilizado como meio de expressão desse desconforto.
No tratado de Nelson, o autor se posiciona: “nenhum fator isolado explica sistematicamente a cólica” e “um médico solidário é importante para resolução do problema”.
São oportunas algumas considerações.
O termo cólica se refere a uma dor abdominal aguda, espasmódica.
A cólica lactante se refere ao choro súbito inexplicado e inconsolável (não responde às medidas habituais de conforto). A cólica típica se manifesta como um ataque paroxístico de choro forte, agudo, estridente, “em crescendo”. O lactante se estica, fica vermelho, vira a cabeça para os lados, as mãos fica crispadas, as coxas fletidas sobre o abdome; com freqüência ocorre a eliminação de gases, que parece trazer um alívio temporário. Com breves pausas, o choro pode se prolongar por horas; o choro é inconsolável, o que traz aos pais sentimentos de frustração e impotência.
Na prática, a cólica é freqüente caracterizada apenas pelo choro sem motivo aparente.
Acontece que o choro é uma ferramenta, normal e fisiológica, de comunicação, usada pelo lactante nos seus primeiros meses de vida. Achar que existe um limiar a partir do qual o choro normal se transforma em cólica é ignorar o verdadeiro continuum que caracteriza os fenômenos biológico, sendo que, neste caso, a cólica seria o extremo do espectro normal da variação do choro. A cólica é um diagnóstico clínico, freqüentemente de exclusão, que não se apóia em nenhum dado de exame físico nem laboratorial. Mas os critérios clínicos pouco avançaram nos últimos anos, a tal ponto que os mais utilizados (com pequenas variantes) são os critérios de Wessel, publicados há quase meio século e conhecidos como a “regra dos 3”: duram pelo menos 3 horas, ocorrem pelo menos 3 dias por semana e pelo menos 3 semanas seguidas; desaparecem aos 3 meses de vida. Acresce o curioso fato do choro com “hora certa”, isto é, as cólicas ocorrem num horário predeterminado, geralmente no fim da tarde, início da noite (19-23 horas).
Na realidade, os critérios de Wessel foram desenvolvidos primariamente para propósitos de pesquisa, já que, para procurar a causa de um processo e respectiva terapia, para maximizar a força estatística, contém que a amostra seja constituída por casos puros, de diagnósticos indiscutível. Por isso, os critérios de Wessel apresentam mais especificidade do que sensibilidade, de modo que acarreta uma taxa alta de falso-negativos (deixam de incluir crianças com cólicas verdadeiras). Na prática, a cólica é diagnosticada em lactantes saudáveis sem causa detectável, cuja irritabilidade traz problemas consideráveis para as famílias que necessitam de assistência; por outro lado limita a aplicabilidade de possíveis achados de pesquisas sobre a cólica verdadeira.
A etiologia da cólica do lactante, que já é conhecida pelos pediatras há mais de um século, continua a representar um enigma. Diferentes causas que podem ser aditivas, mas freqüentemente são contraditórias, têm sido aventadas, e estas podem ser divididas em gastrintestinais e não gastrintestinais. A cólica pode ser uma variante normal e estaria relacionada a uma imaturidade fisiológica. É curioso notar que os prematuros têm o mesmo padrão de choro e de cólicas, e que atingem o pico com 6 semanas de idade gestacional, isto é, a mesma dos lactantes a termo.
Temperamento da criança, ansiedade dos pais (que pode ser agravada por inexperiência e falta de apoio), depressão materna, personalidade da mãe, problemas na dinâmica familiar e a personalidade da mãe, problemas na dinâmica familiar e a possibilidade da mãe, problemas na dinâmica familiar e a possibilidade de seqüelas emocionais são aspectos que já foram levantados e apaixonadamente debatidos.
Na esfera gastrintestinal foram levantadas algumas hipóteses cujas respectivas pesquisas não foram conclusivas:
Motilidade intestinal alterada – hiperperistaltismo colônico e pressão retal aumentada. Fala a favor dessa hipótese, a ação efetiva de alguns antiespasmódicos cujos efeitos colaterais, às vezes graves, impedem seu uso terapêutico.
Hormônios intestinais – a motilina, que exagera a peristalse intestinal, parece estar aumentada nos lactantes que sofrem de cólicas.
Excesso de ar intragastrintestinal – a aerofagia poderia ser causa, mas causa, mas também pode ser conseqüência do choro. O uso de antiflatulentos, como a dimeticona (freqüentemente utilizada na prática), não se mostrou mais eficaz que o placebo, em estudo multicêntrico randomizado, o que fala contra essa hipótese.
O excesso de gases também foi atribuído a uma má absorção fisiológica e transitória da lactose, mas as primeiras pesquisas não foram confirmadas.
Tipo de aleitamento – não se verificou diferença significativa entre crianças em aleitamento materno e as que recebem mamadeira, embora um estudo tenha mostrado que o pico da freqüência de cólicas era mais precoce nas crianças em aleitamento artificial (duas semanas de vida).
Na prática pediátrica, os critérios de Wessel podem ser muito úteis para determinar a conduta. Os casos que se enquadram nesses critérios devem receber do pediatra explicação, tranqüilização e apoio. Os casos que se afastam muito dos critérios devem ser investigados.
Choro contínuo nas duas primeiras semanas de vida levantam a suspeita de fome, inclusive por mamadas ineficientes (controlar o peso). Nos casos associados à regurgitação acentuada e a mamadas nervosas, interrompidas, considerar refluxo gastresofágico, e nas famílias atópicas, em que o lactante apresenta choro acentuado logo após as mamadas, e especialmente se a criança tem outras manifestações alérgicas, pesquisar alergia ao leite de vaca, inclusive nas crianças que mamam leite de peito (exclusivamente).
Como toda boa pesquisa, a de Saavedra e de cols. Dá algumas respostas, como a influência do desmame precoce (embora a cólica vespertina também ocorra na criança amamentada), e levanta muitas dúvidas.
Seria interessante comparar os lactantes com cólicas diagnosticadas pelos critérios de Wessel e as crianças chorosas pela percepção da mãe. Quem sabe os autores se animem e profundem seu estudo num modo prospectivo e seqüencial, fazendo uma pesquisa epidemiológica e etnográfica, com entrevistas em profundidade e observações participantes.
Nesse sentido, a recente e excelente revisão de Bricks pode ser um ponto de apoio.
* Presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Jornal de Pediatria – Vol. 79, No. 2, 2003