Amamentação: primeira experiência de comunicação
Breastfeeding: first experience of communication
Fonte: DIVULGAÇÃO EM SAÚDE PARA DEBATE | RIO DE JANEIRO, N. 54, P. 26-34, MAR 2016
Selma Eschenazi do Rosario*, Luciana Bettini Pitombo**, Jane Gonçalves Pessanha Nogueira***
RESUMO
Este artigo é a versão escrita das ideias trabalhadas na oficina ‘O desenvolvimento emocional do bebê e sua relação com o processo de amamentação’ voltada para um grupo de profissionais de saúde. Nela, tomamos como premissa discorrer sobre a importância da experiência de amamentação do ponto de vista do desenvolvimento emocional do bebê, procurando demonstrar que esse momento vai além dos aspectos ligados à nutrição e ao desenvolvimento fisiológico do infante. A constituição da subjetividade se funda primordialmente em uma matriz relacional encarnada na díade mãe-bebê, e a amamentação faz parte desse processo. A amamentação é um elemento essencial na composição do ambiente favorável ao desenvolvimento saudável de uma criança.
ABSTRACT This article is the written version of the ideas developed in the workshop ‘O desenvolvimento emocional do bebê e sua relação com o processo de amamentação’ focused on a group of health professionals. In it, we take as a premise to discuss the importance of the experience of breastfeeding from the point of view of the emotional development of the baby, trying to demonstrate that such moment goes beyond the aspects concerning the nutrition and physiological development of the infant. The constitution of subjectivity is based primarily on a relational matrix embodied in the mother-infant dyad, and breastfeeding is a part of that process. Breastfeeding is an essential element in the composition of the facilitating environment to the healthy development of a child. KEYWORDS Breast feeding; Child development; Health promotion; Mother-Child relation; Object attachment.
Introdução
Este manuscrito é a versão em texto das reflexões desenvolvidas na oficina ‘O desenvolvimento emocional do bebê e sua relação como processo de amamentação’. O evento foi parte do processo de formação da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis (EBBS) do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) voltado para os consultores estaduais da Coordenação-Geral de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde (CGSCAM/MS) nos 27 estados brasileiros e no Distrito Federal1. Nessa atividade, abordou-se a importância da experiência da amamentação do ponto de vista do desenvolvimento emocional do bebê, procurando demonstrar que o momento da amamentação vai além dos aspectos ligados à nutrição e ao desenvolvimento fisiológico do infante. Compartilhar essa temática com profissionais ligados à gestão amplia a compreensão do que está em jogo quando o que se pretende é o desenvolvimento de boas práticas no âmbito da amamentação e do cuidado com a criança. Criar um ambiente favorável para esse momento implica acolher o bebê e sua mãe, com todas as dificuldades e variações surgidas durante o ato de amamentar. A singularidade e a imprevisibilidade inerentes a qualquer encontro intersubjetivo precisam ser incluídas e acompanhadas, dialogando com as eventuais prescrições instituídas em dado sistema ou serviço de saúde. Contar com conhecimento oriundo do campo dos estudos sobre o desenvolvimento emocional infantil instrumentaliza as equipes para um manejo mais sensível desse processo. A constituição da subjetividade se funda primordialmente em uma matriz relacional encarnada na díade mãe-bebê, e a amamentação faz parte desse processo. A amamentação é um elemento essencial na composição de um ambiente que favoreça o desenvolvimento saudável de uma criança.
Momentos iniciais
Todos nós sabemos que quando um bebê vem ao mundo, o que ele mais precisa é encontrar um ambiente hospitaleiro. É preciso que essa recepção ocorra sobre uma base segura, que pode ser descrita pelo modo como ele é amparado e acolhido no próprio ato do nascimento. Segundo o pediatra e psicanalista D. W. Winnicott, a ideia de sustentação envolve o modo como o bebê é segurado, de maneira confiável e acolhedora, por quem o recebe e dele cuida desde os primeiros minutos da vida (WINNICOTT, 1996). Essas serão as primeiras marcas, os primeiros registros de uma vida psíquica que ora se inicia, já que o bebê é totalmente dependente do outro para que o seu desenvolvimento ocorra de modo promissor. Para o bebê, o ato do nascimento é importante porque nesse momento ocorre uma mudança expressiva, uma experiência radical de passagem de um estado ambiental para outro. Até então, ele se desenvolveu e habitou o útero materno, vivia envolto pela placenta, banhado pelo líquido amniótico, respirando e se nutrindo através do cordão umbilical que o ligava irremediavelmente à sua mãe. A partir do seu nascimento, é necessário que se situe espacialmente, de um outro modo que se adapte a um ambiente diferente daquele em que estava envolto, precisando não só respirar por ele mesmo como também se comunicar pelo choro, para demonstrar o seu incômodo e ser atendido em suas necessidades. Existem duas situações inéditas com as quais o recém-nascido tem que lidar logo após o nascimento: o início da respiração e a primeira experiência com a ação da gravidade que ainda não havia entrado em cena na vida intrauterina. Dentro do útero materno, o bebê estava habituado a ser contido em todo o seu redor, e após o nascimento a configuração ambiental é totalmente modificada. Essa mudança relacionada à gravidade pode interferir na sensação espacial que tem o bebê. Por isso a importância decisiva do gesto de sustentar o bebê, que Winnicott (1996) considera mais do que um mero gesto. Esse autor o define como uma função relevante ao desenvolvimento afetivo. Trata-se da função holding, que ele descreve assim: segurar com os braços e envolvê-lo com o calor de seu corpo, por todos os lados, de modo a aproximá-lo da situação ambiental em que vivia anteriormente. Do ponto de vista afetivo, isso significa que: se antes o bebê era envolto em um tipo de experiência em que era “amado [cuidado] por todos os lados”, a alteração dessa condição passa a ser a de que “é amado [cuidado] de baixo para cima” (WINNICOTT, 1996, P. 53). Por essa razão, o cuidado materno de segurar o bebê fisicamente e acolhe-lo em seus braços é considerável, e isso deveria valer também para os profissionais que o recebem no momento do parto. Vale ressaltar que essa sustentação não é apenas de caráter físico, tendo também uma função constitutiva, ou seja contribui para a formação da subjetividade. Passar por uma mudança dessa natureza requer do bebê uma adaptação que está longe de ser trivial e de caráter apenas fisiológico. Há um grau de exigência para que ele processe essa adaptação, mas sozinho não conseguiria. Nesse momento, é absoluta a dependência da provisão ambiental, sendo necessário que alguém se coloque à sua disposição. Ou seja, é o ambiente que precisa se adaptar ao bebê e, na maioria das vezes, ele coincide com os cuidados maternos. O ambiente, nos primórdios, é a mãe.
A maternidade e o contexto ambiental
A partir do final da gravidez, a gestante costuma desenvolver uma qualidade que a faz envolver-se intensamente com a questão da maternidade, estando inteiramente dedicada a essa experiência. Essa condição é chamada por Winnicott de “preocupação materna primária” (2000B, P. 399) e perdura por algum tempo após o nascimento do bebê. Nesse estado, ela é capaz de compreender as necessidades de seu bebê sem que haja uma experiência prévia ou instrução de alguém. Essa condição faz com que a mãe esteja atenta e sensível. Há uma especial disponibilidade que a habilita a dar a adequada resposta às demandas que lhe são dirigidas. A mãe fica em permanente estado de alerta, com os sentidos apurados que a fazem perceber qualquer reação do bebê. Esse é um estado passageiro de total devoção. Muitas mulheres, por temerem não retornar à sua condição anterior, não conseguem experimentar essa intensa identificação com bebê, um processo que tem como referencial as memórias de sua própria maternagem, quando ela nasceu (DAVIS; WALLBRIDGE, 1982). Quando acontece um impasse dessa natureza, isso exige especial cuidado e atenção dos familiares e profissionais que a acompanham, para que o sofrimento e os possíveis danos, para ambos, sejam minimizados. Um acolhimento que se faz necessário para que a mãe possa exercer a função materna de modo favorável ao vínculo em construção. Quando essa recepção primeira se dá de modo cuidadoso, o que o bebê experimenta é registrado como a continuidade do viver. Temos aqui a ideia de uma ‘linha de existência da vida’ que se iniciou no espaço intrauterino e que por ocasião do nascimento não sofreu nenhuma interrupção brusca. É inevitável que alguma descontinuidade exista e que o bebê leve algum tempo para recuperar o sentimento de continuidade, que só pode ser resgatado desde que as condições de cuidado favoreçam a esse processo. Isso pode ser feito, por exemplo, pelo imediato contato pele a pele logo após o parto, quando ele é colocado sobre o corpo da mãe, próximo ao seio e sendo envolto pelos seus braços. Esse seria um modo de promover a recuperação dessa continuidade, levando o bebê a experimentar um estado de quietude, ficando ali, meio que embalado pelo corpo materno para que tenha tempo de se recuperar e de se preparar para buscar o alimento (DIAS, 2003). A importância do contexto ambiental que envolve a experiência do nascimento de uma criança vai além da atenção e cuidado dos seus pais e familiares, sendo relevante também que a equipe de profissionais envolvida nesse instante crucial da vida seja consciente e sensível quanto aos cuidados oferecidos, que devem ser providos tanto quanto as competências técnicas. O mundo é apresentado aos poucos ao bebê pela sua mãe ou por alguém no exercício dessa função. Alguém que encarna o ambiente, que pode ser ou não provedor. Se a provisão ambiental ocorre a contento, temos aí o que Winnicott chamou de “ambiente facilitador” (1979, P. 43). Este ambiente, que se institui em torno do nascimento de um bebê, foi valorado por Winnicott como um ambiente potencialmente facilitador. Para o bebê, no início o ambiente é subjetivo, ou seja, não é exclusivamente externo ou interno, sendo um e outro ao mesmo tempo. O sentido de externalidade ainda está por vir, e “só então o ambiente será visto como externo e, mesmo assim, não inteiramente e nem sempre” (DIAS, 2003, P. 67).
A base do relacionamento humano
Segundo Winnicott, um recém-nascido nunca pode ser compreendido isoladamente porque sempre se trata de um bebê e sua mãe. O seu nascimento psíquico é de cunho relacional, sendo o contato com o ambiente algo sempre da ordem do encontro (ROSARIO, 2007). Como o bebê em seus primeiros momentos de vida extrauterina é muito suscetível aos estímulos externos (condições de tato, temperatura, luminosidade etc.), é desse contato inicial que ele se ‘nutre’, por isso a necessidade do exercício da função materna para que ele possa se desenvolver de modo saudável. A construção desse vínculo envolve a confiança que a mãe vai transmitindo ao filho pela interação que estabelece com ele. O que entra em cena é o pronto atendimento às suas necessidades (cuidados profiláticos). Isso envolve também o modo de se comunicar com ele através do olhar, das entonações de voz, dos códigos de linguagem estabelecidos (‘manhês’2); dos seus gestos e do modo como brinca com ele. O que está em jogo é uma comunicação mais sutil, que faz com que a mãe entre em sintonia com o seu bebê, adaptando-se a ele e levando em consideração os seus ritmos, grunhidos de desconforto, primeiros sorrisos etc. Vale reafirmar que o desenvolvimento psíquico do bebê é um fenômeno complexo que inclui o seu potencial (tendências herdadas) e mais o que ele recebe e experimenta da provisão ambiental. O modo como ele processa e elabora essa experiência importa porque se trata do uso que ele faz das vivências de trocas com a mãe, seu ambiente primordial. Desde o início, o aspecto relacional entra em cena, pois se trata de alguém que ao oferecer suporte físico e afetivo ao bebê, estabelece com ele uma comunicação a partir do próprio corpo, especialmente durante a amamentação. Esse é um tipo de cuidado que possibilita, minimamente, manter o fluxo de continuidade de sua existência para que ele possa “seguir sendo”, sentir que existe (WINNICOTT, 1999, P. 41). Nesse processo, o bebê vai alternando experiências de atividade e repouso. Quando acorda e tem fome, está mais excitado. Após a amamentação, se está saciado, costuma aquietar-se e dormir. Conforme avança gradativamente em seu desenvolvimento, vai acumulando lembranças dessas experiências significativas e expandindo, pouco a pouco, a sua interação com a realidade que o cerca.
Amamentação: experiência para o desenvolvimento afetivo do bebê
Ao abordar o tema da amamentação, Winnicott é enfático quanto ao aspecto relacional lembrando que é uma experiência que se aprimora a partir da primeira mamada, em que o bebê vai aprendendo pelo acúmulo de vivências que darão a ele uma memória dessas experiências. No que tange o desenvolvimento emocional, a amamentação é a situação privilegiada em que começam a se estabelecer os primeiros relacionamentos com a realidade externa. O mais importante, aqui, é a qualidade do contato humano que tem como matriz a comunicação peculiar entre mãe e bebê, que é um aprendizado de troca e mutualidade. O ato de amamentar é ao mesmo tempo uma experiência bem simples e complexa, e embora possamos fazer considerações genéricas a respeito de orientações que facilitam essa experiência, do ponto de vista afetivo, temos que considerar: a singularidade de cada caso, os costumes familiares, as crenças e fantasias, que interferem no modo como essa experiência acontece. Entretanto, a delicadeza desses primeiros encontros nem sempre é compreendida. Muitos que estão ao redor, apesar das boas intenções, acabam agindo imperativamente a favor de determinado padrão de funcionamento, insistindo em uma aderência imediata aos ensinamentos protocolares. São pessoas decididas a fazer o bebê mamar no peito a todo o custo e não se dão conta de que é preciso orientar, mas sem forçar. Por exemplo, “pegam o bebê embrulhado no cueiro, com as mãos presas e empurram o seio materno boca adentro”, provocando, assim, a reatividade de ambos que pode levar à inibição, sem dar a chance à dupla mãe-bebê de encontrar o seu melhor modo de interagir. Na esfera do desenvolvimento emocional, isso significa impedir que o bebê já participe ativamente desse momento para que seja, ele mesmo, o criador do objeto que precisa ser encontrado — o seio (WINNICOTT APUD DIAS, 2003, P. 181).
A construção do vínculo e a importância do ambiente
O processo da amamentação é uma questão de vínculo que vai sendo instituído e que vai abrindo caminho para o acúmulo de experiências que podem ser bem ou malsucedidas. A relação de interdependência entre os fatores físicos e emocionais pode interferir na alimentação do bebê e também na relação entre ambos que está em processo de construção. Se as primeiras mamadas ocorrem com incentivos, respeitando-se os ritmos e tempos próprios de cada dupla, a amamentação pode ser vista como um momento de descoberta, de criação e, sem dúvida, de fortalecimento de vínculo. A mãe que se adapta às necessidades do bebê pode compreender que às vezes “é mais importante respeitar a recusa do bebe de mamar do que forçá-lo, por disciplina ou por temor da desnutrição” (DIAS, 2003, P. 182). Todos os sentidos corporais do bebê estão ativados nesse momento: visão, audição, olfato, gustação e tato. A cada mamada, há um mundo de sensações que ele experimenta gradativamente, com certa constância. É isso que faz com que ele vá acumulando em sua memória afetiva o que experimentou. Nesse momento, para ele, essa constância é valiosa, porque são experiências constitutivas de sua subjetividade. Algo que se repete habitualmente e, embora muito parecidas, são sempre diferentes, pois cada mamada é única. Quando dizemos que a amamentação é marcada por um ritmo determinado, não se trata do número de mamadas e do tempo de intervalo entre elas, mas do modo como cada bebê imprime um ritmo, marcado pela sua frequência respiratória e também pela sua interação com o ambiente. Uma vivência que pode ocorrer em clima de tranquilidade, de aceleração, de turbulência, de tristeza etc. Há situações em que a experiência se dá de maneira muito complicada, pois temos que considerar que estão aí envolvidas e ativadas as marcas trazidas pela mãe de sua própria vivência enquanto bebê. Tudo isso compõe um manancial de experiências que irão influenciar a constituição existencial no que refere tanto aos aspectos físicos quanto aos psíquicos. O bebê vem ao colo, a mãe o segura de modo que ele e ela estejam em uma posição de conforto. O bebê acha o mamilo, ele olha para a mãe, coloca sua mãozinha no seio, sente o cheiro do corpo da mãe, suga e sente o calor e o sabor do leite. Escuta os ruídos ao seu redor e também aqueles que ele produz com a sua sucção. Pelo fato de estar muito próximo ao corpo materno, escuta também os ruídos que dele emanam. Corpo que ele ainda não reconhece como totalmente separado do seu, ou seja, ainda o sente como sendo a continuidade de seu próprio corpo. Em dados momentos, ele faz pequenas pausas para respirar melhor e aproveita para examinar o rosto materno. Nesses momentos se reconhece no rosto da mãe, que funciona para ele como uma espécie de espelho. Por isso a importância do bem-estar materno nesse momento. Se a mãe está muito angustiada, ela transmite essa angústia ao filho, mas se ela está experimentando uma relação de mutualidade com seu filho, é capaz de estabelecer com ele uma parceria, mesmo que de modo assimétrico. Essa assimetria se dá porque o bebê ainda não tem uma experiência pregressa da qual ele possa lançar mão tal como a mãe, que já foi bebê algum dia e por isso mesmo traz uma bagagem registrada em sua memória afetiva, ainda que inconscientemente. Nem sempre essa experiência tem a garantia de acerto. Uma mãe muito ansiosa, por exemplo, pode até, involuntariamente, parar de produzir o leite se o bebê demonstra dificuldades para ‘pegar o peito’ por algum motivo (quando sente cólica ou respira mal por conta de uma gripe, por exemplo), a mãe pode fantasiar a respeito dessa recusa, sentindo-se incapaz de lidar com a questão e até mesmo achar que não consegue produzir um leite de qualidade e em quantidade suficiente para alimentar o seu filho. Quando a mãe não pode experimentar esse estado de entrega, o que ela reflete é o seu próprio humor e suas próprias defesas. Winnicott (1971, P. 154-155) diz que o olhar da mãe, nesses momentos, reflete o bebê, a fim de que ele “se reconheça” nesse olhar. Se o bebê não encontra a si mesmo no olhar materno, isso pode ter consequências que atrapalhem o seu desenvolvimento. Haverá dificuldade para que o bebê possa construir a imagem de si mesmo. A mãe é o ente primordial das ações de saúde (TEMPORÃO; PENELLO, 2010), por isso a importância de ela poder contar com um ambiente acolhedor que lhe dê um suporte, físico e emocional, para que possa compartilhar não apenas as suas alegrias, mas também seus medos, inseguranças e dúvidas. Se ela pode contar com esse tipo de provisão, terá suficiente reserva afetiva para lidar com os inesperados dessa relação. Poder ser assistida pelo seu companheiro e pai do bebê ou algum familiar, enfim, alguém que cuide e lhe ofereça esse suporte, é algo valioso, pois, sentindo-se amparada e acolhida, ela ficará disponível para dedicar-se ao bebê e também descansar nos intervalos das mamadas, por exemplo, pois alguém em que ela confia estará em seu lugar. Durante a amamentação, quando mãe e filho “chegam a um acordo na situação de alimentação, estão lançadas as bases de um relacionamento humano” (WINNICOTT, 1996, P. 55). É a partir disso que se estabelece o padrão de capacidade da criança de relacionar-se com os objetos e com o mundo. Isso só acontecerá posteriormente quando o bebê estiver em condições de se reconhecer como uma pessoa inteira, pois o relacionamento interpessoal sugere que seja entre pessoas que já se percebem como unitárias. O trabalho dos cuidadores nesse momento é de extrema importância, por valorizar a delicadeza dessa experiência. Não é interferir naquilo que a mãe sabe fazer melhor do que ninguém, ainda que fragilizada, pois, mesmo necessitando de apoio, é dela a tarefa de iniciar a relação com o seu bebê. O profissional cuidadoso não criará expectativas imperativas de sucessos e nem temerá fracassos (DIAS, 2003), ele saberá aguardar, estando mais em posição de presença reservada, no aguardo de solicitação de auxílio.
Da amamentação ao desmame
Quando a amamentação se inicia, já há uma semente para a experiência do desmame que ocorrerá oportunamente. Do mesmo modo que a amamentação favorece a criação de vínculo devido à adaptação inicial da mãe às necessidades do bebê, gradativamente um processo de desmame irá acontecendo simultaneamente. A mãe é aquela que institui o primeiro relacionamento significativo para o filho, mas também é a pessoa que irá possibilitar a expansão do contato e da experiência do bebê com o ambiente que o cerca. O vínculo com a mãe permanece, mas é ela que estimula a entrada de terceiros nesse relacionamento, a começar pelo pai. Mesmo que o pai esteja presente desde o início e já participando dos cuidados, nesse momento a função materna ainda predomina. Aos poucos o cenário começa a mudar, e a presença do pai e de familiares próximos vai sendo percebida pela criança que começa a ampliar o seu campo relacional. A base para o desmame é uma boa experiência de amamentação (WINNICOTT, 1996), e quando é o próprio bebê que promove o auto desmame, esse gesto deve ser aceito como ganho de autonomia. Geralmente, o desejo de desmamar acaba partindo da mãe, que vai promovendo o espaçamento das mamadas e permitindo apenas a mamada noturna, após um dia inteiro de desmame. Com o seu olhar apurado, a mãe percebe que a criança já pode suportar um tempo cada vez maior sem a alimentação desse tipo, e então vai estimulando o processo de mudança alimentar. Pode-se dizer que a ampliação do contato
Com a realidade e o desenvolvimento da linguagem ajudam a ação do desmame, sendo o seio “substituído pela voz, pela palavra e pelo olhar” (QUEIROZ, 2013). Além disso, em decorrência de um processo de maturação, a criança vai conquistando uma postura mais ereta, sustenta sozinha a cabeça no tronco, inicia-se a dentição e com isso há a introdução de outro tipo de alimentação. Essas mudanças costumam coincidir com o início da verbalização, feita ainda por ‘balbucios e grunhidos’, mas já surgindo os primeiros fonemas. A comunicação que era não verbal avança para a aquisição da linguagem, e isso favorece a expansão do contato com a ambiência externa que vai sendo apreendida pelo bebê. Com essa evolução, há uma gradativa conquista do sentido unitário de ser, pois ele começa a perceber que é alguém distinto de sua mãe, embora permaneça ligado a ela por estreitos laços afetivos. Existe um percurso pela frente até que chegue o momento em que ele poderá se reconhecer como alguém separado de sua mãe. O bebê começa a experimentar um processo de diferenciação e vai integrando aquilo que vivencia. Segundo Winnicott, essa integração acontece assim: pedaços da técnica do cuidar, de rostos vistos e sons ouvidos e cheiros cheirados são apenas gradualmente reunidos e transformados num único ser que será chamado mãe. (2000A, P. 224).
Esse processo faz com que o bebê, a partir de dado momento, reconheça-se como um sujeito distinto da figura materna, com uma imagem corporal própria. Isso fica muito claro quando a criança já pode se referir, ao falar de si mesma, pela palavra ‘eu’ e não mais como ‘ele(a)’. Esse momento costuma coincidir com um avanço no processo de interação dela com o mundo que a cerca. A comunicação com os demais seres que a cercam se expande. O tempo adequado ao desmame é subjetivo, pois depende muito da relação estabelecida entre a mãe e o bebê, mas também de fatores externos que podem interferir ocasionando o desmame, às vezes precocemente, ou se estendendo em demasia. Por exemplo, uma mãe que adoece ou engravida e precisa ou resolve suspender a amamentação. A própria criança também pode adoecer e pode recusar a alimentação. Se for possível evitar, é importante que esse momento do desmame não coincida com alguma intercorrência ou com um afastamento materno de fato, tal como o retorno da mãe ao trabalho ou a ida da criança para a escola. De modo geral, a criança sinaliza que já está apta a lidar com a situação de desmame, e a sensibilidade materna percebe qual é a melhor hora para que isso aconteça. Para Winnicott (1982), um sinalizador de que a criança está pronta para esse desapego é quando começa a brincar de deixar cair os objetos e esperar que retornem. Nesse momento, ela está fazendo uso da sua capacidade de ‘livrar-se das coisas’, ou seja, aprendendo a elaborar ludicamente o processo de afastamento temporário de sua mãe. Em suma, a linguagem se desenvolve, a criança passa a se interessar por outros alimentos, por outras pessoas, por outros objetos. Já está, então, em condições de interagir com o mundo como alguém que se reconhece como sujeito interdependente.
Sobre a importância do tema
A amamentação é um acontecimento crucial na vida de todos, e a relevância desse momento vai muito além do seu caráter biológico, com todas as implicações nutricionais determinantes para o bom crescimento da criança. Tudo o que ocorre nessa experiência representa ‘material’ para a construção da personalidade. Por esse motivo, é importante que a mãe esteja dedicada a interagir com seu filho, envolvida e oferecendo-lhe as melhores condições para que ele possa armazenar essas vivências em sua memória afetiva. São experiências que irão influenciar o seu modo de ser ao longo da vida e na interação com o outro. Da mesma forma, é importante que aqueles que se dedicam aos cuidados da dupla mãe-bebê — pai, familiares e profissionais de saúde — estejam atentos aos aspectos afetivos presentes na comunicação da mãe com seu bebê, durante a amamentação, para que possam oferecer o devido cuidado e acolhimento quando necessário. Geralmente, os protocolos voltados para a amamentação enfatizam os aspectos físicos e técnicos aí implicados, que são extremamente importantes, mas não suficientes. Nesse contexto, qual seria a relevância das reflexões desenvolvidas até aqui para os gestores da área de saúde? Ao incluir no processo de formação dos consultores de saúde da criança o tema da amamentação e sua importância para os aspectos afetivos implicados na constituição da subjetividade, o objetivo foi ampliar a compreensão sobre a riqueza do ato de amamentar, que envolve o encontro inicial do bebê com o mundo. Como já foi dito, isso se dá na relação com sua mãe, uma relação que não vem pronta e que vai sendo construída gradativamente. Esse é o alicerce do relacionamento humano que, ao ser iniciado em ambiente facilitador, possivelmente conduzirá à formação de um ser humano em condições mais favoráveis para lidar com a vida de modo resoluto, ao mesmo tempo em que valoriza a convivência com os demais. Estaremos diante de alguém que recebeu amor, foi cuidado e nutrido não apenas para atender às suas necessidades iniciais para sua sobrevivência, mas também para interagir com o mundo com autonomia e criatividade. Como vimos, a arte de bem amamentar pode contribuir significativamente não só para a formação de um ser humano mais amoroso como também para construção da cidadania.
*Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Consultora para desenvolvimento infantil e formação de grupos e tutora do projeto Contribuições da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis para formulação e implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). [email protected]
**Psicóloga e psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Consultora para desenvolvimento infantil e formação de grupos e tutora do projeto Contribuições da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis para formulação e implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). [email protected]
***Psicóloga e Psicanalista. Mestranda em Perinatologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Consultora para desenvolvimento infantil e formação de grupos e tutora do projeto Contribuições da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis para formulação e implantação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC). [email protected]
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