No Brasil, filhos de mães encarceradas já nascem com direitos violados
Cada vez mais crianças nascem em presídios, aprisionadas entre o colo provisório das mães e as grades permanentes do Estado
Revista Época: GABRIELA VARELLA, COM MARCELO MOURA E DANIELE AMORIM
Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana (18/12/2017)
O estrondo do portão de ferro que se fecha marca o fim de mais um dia. Na cela, com não mais de 10 metros quadrados, apertam-se objetos cobertos por mantas, uma cama protegida por um mosquiteiro e um guarda-roupa aberto com roupas de bebê dobradas. Adesivos infantis decoram a parede e mantas em tons pastel ocultam as grades de ferro. Ali, na ala da amamentação na Penitenciária Feminina de Pirajuí, em São Paulo, dormem Rebeca, de 7 meses, e sua mãe, Jaquelina Marques, de 23 anos. A menina só vê o mundo exterior – árvores, carros, cachorros, homens – ao ser levada para consultas pediátricas. Normalmente, passa o tempo todo com a mãe, ocupante temporária de uma das 12 celas no pavilhão.
Durante o dia, elas podem circular pela área. Doze bebês, suas mães e três gestantes prestes a dar à luz dividem o espaço. Alguns brinquedos ficam espalhados pelo chão. No centro da ala, roupas das crianças secam num varal exposto ao sol. Na entrada, duas celas fazem as vezes de copa e espaço de lazer – uma televisão de tubo transmite imagens esverdeadas. Em algum lugar da cadeia, mulheres se comunicam aos gritos. “É esse inferno todos os dias”, suspira Jaquelina, com o cabelo amarrado numa trança para amenizar o clima abafado.
A penitenciária fica a menos de dez minutos do centro de Pirajuí, a 390 quilômetros de São Paulo. Abriga mais de 1.200 presas (quase o dobro de sua capacidade), divididas em quatro pavilhões, uma ala de amamentação e um espaço para quem cumpre pena em regime semiaberto. A maioria (1.034 mulheres) cumpre regime fechado. Predominam as condenadas por tráfico de drogas.
Rebeca é a segunda filha de Jaquelina a nascer no cárcere. Sua mãe foi presa pela primeira vez em 2012, com 7 gramas de maconha, acusada de tráfico – e estava grávida. “Quando descobri, parece que abriu um buraco em mim. Tinha o sonho de ser mãe, mas não dentro deste lugar”, diz. Fumava maconha e cheirava cocaína. A residência onde foi presa, segundo os autos de seu processo, servia para venda de drogas. Também consta uma agressão dela a uma mulher nesse mesmo local. Em 2014, saiu em liberdade condicional e deu à luz um menino. Em 2016, foi presa novamente, sentenciada a pouco mais de cinco anos, após recorrer da condenação e perder. Espera passar para o regime aberto no final de 2018. Pouco antes de voltar à penitenciária, seu marido também foi preso, acusado de tentativa de homicídio.
Desde 2002, a legislação define que o usuário de drogas não deve ser sentenciado à prisão, mas a falta de critérios para distingui-lo do traficante (que comete um crime hediondo) responde por boa parte dos encarceramentos. Em São Paulo, seis em cada dez condenadas foram enquadradas como traficantes. “É muita cadeia para pouca droga”, diz Jaquelina, aninhando Rebeca no colo. É comum que a primeira instância da Justiça condene a penas de cinco anos em regime fechado gente flagrada com pequeno volume de drogas. Quem tem dinheiro para pagar bons advogados recorre a instâncias superiores, que levam em conta fatores como bons antecedentes para baixar penas, explica Mário Luiz Bonsaglia, subprocurador-geral da República. Ele coordena a área do Ministério Público Federal responsável por supervisionar o sistema prisional e alerta sobre a dificuldade que as defensorias públicas têm para garantir assistência jurídica aos mais pobres. No momento, sem essa assistência, dispara a população de presas no país.
De 2000 para 2014, o índice de mulheres encarceradas no Brasil saltou de 6,5 para 36,4 a cada 100 mil, segundo estimativa do Ministério da Justiça. Duas em cada três são negras, a maioria é pobre e cometeu crime não violento, usualmente sob ordens de alguém, como o companheiro. Três em cada quatro dessas mulheres são mães. Entre elas, muitas têm filhos enquanto cumprem pena.
As que dão à luz na prisão raramente engravidam enquanto presas. “Todas as gestantes que tivemos no presídio já chegaram nessa condição. Nenhuma engravidou aqui”, diz Graziella Costa, diretora da Penitenciária Feminina de Pirajuí, que funciona há cinco anos. “As mulheres presas são abandonadas. Recebem poucas visitas. Visita íntima, então… se muito, umas 30 recebem.” Graziella conhece as presas pelo nome. “Vai para o semiaberto, Marlene*?”, diz, ao adentrar a enfermaria da penitenciária no fim da tarde, enquanto o eco das trancas preenche os corredores e entregam-se nas celas pães assados pelas presas. Para o padrão brasileiro, a penitenciária não é ruim. Mas crianças não deveriam estar ali.
O Código de Processo Penal, no Artigo 318, permite que se substitua a prisão preventiva pela domiciliar para a mulher gestante e com filho de até 12 anos incompletos, por decisão do juiz.
Adriana Ancelmo, ex-primeira-dama do Rio de Janeiro e presa na Operação Lava Jato, passou oito meses em prisão domiciliar por ter filho nessa faixa de idade (em 23 de novembro, foi determinado que Adriana deveria voltar ao regime fechado). (Ao publicarmos essa reportagem, foi liberada pelo “Bandido Supremo” do STF para voltar à prisão domiciliar). Mais de 40% das mulheres encarceradas no Brasil são presas provisórias. “Se seguíssemos a lei à risca, a maioria dessas mulheres grávidas ou com filhos, presas em situação provisória, não estaria encarcerada”, diz Bruna Angotti, professora de Direito e coautora com Ana Gabriela Braga, doutora em criminologia, da pesquisa Dar à luz na sombra. “O processo não correu, elas têm possibilidade de estar em casa, mas seguem presas”, afirma Bruna. As instâncias superiores defendem mais a opção de criança e mãe ficarem juntas em liberdade do que as instâncias inferiores, diz o subprocurador Bonsaglia.
Manter uma criança com a mãe na cadeia (mesmo que em ala especial) ou afastá-la da mãe gera efeitos ruins de toda sorte.
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