Aleitamento materno e cárie do lactente e do pré-escolar: uma revisão crítica
Breastfeeding and early childhood caries: a critical review
J Pediatr (Rio J). 2004;80(5 Supl):S199-210: Cárie do lactente e do pré-escolar, cárie precoce na infância, cárie de estabelecimento precoce, aleitamento materno, fatores de risco.
Objetivo: Buscar evidências científicas que comprovem ou refutem a afirmação de que o aleitamento materno noturno e em livre demanda está associado com cárie do lactente e do pré-escolar.
Fontes dos dados: Foi realizada busca de artigos científicos utilizando-se as bases de dados MEDLINE, Lilacs e SciELO, páginas de internet relevantes, livros técnicos e publicações de consenso de organismos nacionais e internacionais. As palavras-chave utilizadas foram: early childhood caries, dental caries, dental decay e breastfeeding. Percebida a relevância, também se buscou diretamente as referências indicadas nos artigos encontrados.
Síntese dos dados: Os estudos que relacionam a cárie com o aleitamento materno invariavelmente só observam os fatores inter-relacionados com o surgimento dessa doença, deixando de lado aqueles associados à amamentação. Muitos desses fatores atuam como variáveis de confusão porque, do mesmo modo que interferem no aleitamento materno, também têm influência no surgimento da cárie. Além disso, estudos atuais têm demonstrado a cariogenicidade de vários alimentos dados às crianças e a não-cariogenicidade do leite materno.
Conclusão: Não há evidências científicas que comprovem que o leite materno possa estar associado com o surgimento de cárie, sendo essa relação complexa e confundida por muitas variáveis.
Nilza M. E. Ribeiro – Especialista em Odontopediatria pela SOBRACID.
Manoel A. S. Ribeiro – Pediatra neonatologista, Hospital São Lucas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pós-graduado em Gestão em Saúde pela PUCRS.
A cárie dentária permanece como a doença infecciosa mais comum em crianças, estimando-se que, nos Estados Unidos, tenha uma prevalência cinco vezes maior que a da asma e sete vezes maior que a da rinite alérgica (1,2). É uma doença prevenível, e sua prevenção inicia-se no consultório pediátrico (3). Embora o pediatra seja o principal responsável pela promoção da saúde oral da criança, poucos artigos científicos com foco nesse assunto têm sido publicados em revistas pediátricas (2,4).
A cárie é uma doença infecciosa induzida pela dieta e, apesar do declínio mundial em todas as idades, em especial pela utilização do flúor, sua prevalência permanece estável na dentição decídua (5-7), ou seja, no grupo de 20 dentes que se formam entre 12 e 18 semanas de vida intra-uterina e erupcionam, em média, entre 7 e 30 meses de idade (8-10). Persiste como um sério problema de saúde pública, e o seu controle deve ser prioridade, pois pode levar à má-oclusão dos dentes permanentes, causar problemas fonéticos e diminuição da auto-estima (11,12). Também foi demonstrado que a cárie dentária pode diminuir de forma progressiva o ganho de peso da criança, o qual poderia ser revertido após uma completa reabilitação bucal (13).
A prevalência da cárie na população em geral é incerta, pois diferenças metodológicas têm gerado dificuldade para comparar os vários estudos entre si (11,14). No Brasil, o Projeto de Saúde Bucal – 2003 mostrou que 27% das crianças de 18 a 36 meses e quase 60% das crianças de 5 anos de idade apresentavam pelo menos um dente decíduo cariado. Em média, uma criança brasileira com até 3 anos de idade já possui, no mínimo, um dente com experiência de cárie; aos 5 anos, esse valor aumenta para quase três dentes. Grandes diversidades regionais são percebidas em todas as idades, com as regiões Norte e Nordeste apresentando percentuais de dentes hígidos inferiores quando comparados com as regiões Sul e Sudeste (15).
Na odontologia, é quase um consenso que o aleitamento materno em livre demanda, especialmente à noite e com duração prolongada, provoque cárie (10,11,16-18). De modo semelhante, na pediatria, já existem publicações adotando essa mesma posição (7,19). A Academia Americana de Odontopediatria (AAPD) declarava haver um risco potencial devastador de cárie por aleitamento para crianças alimentadas ao seio e com mamadeira, estando este risco relacionado à alimentação prolongada e repetitiva sem o acompanhamento de medidas de higienização oral apropriadas, sendo os pais encorajados a oferecer líquidos em copo para o seu filho próximo ao seu primeiro aniversário e a retirar a mamadeira entre 12 e 14 meses de idade (20). Sem definição precisa, os termos “exposição prolongada” e “desmame” tiveram interpretações diversas, culminando com os odontologistas aconselhando o desmame, inclusive do leite materno, antes de 1 ano de idade. Ao desencorajarem o aleitamento materno prolongado e em livre demanda (10,19,21), esses profissionais desconsideram todas as vantagens já bem documentadas do aleitamento materno e a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) de manutenção da amamentação até os 2 anos ou mais (22). Do mesmo modo, a Academia Americana de Pediatria considera que as crianças que dormem com mamadeira ou mamam no peito durante a noite são de alto risco à cárie (2,23).
Em razão disso, a presumível cariogenicidade do leite materno é assunto de significativa importância, porque este, juntamente com seus substitutos lácteos, é a principal fonte nutritiva nos primeiros anos de vida (24,25). No presente artigo, os autores apresentam uma revisão da literatura sobre o tema, analisando os vários estudos epidemiológicos que investigaram uma possível relação entre aleitamento materno e cárie.
Conceituação
A expressão early childhood caries, traduzida para a língua portuguesa como cárie do lactente e do pré-escolar (CLPE), é atualmente utilizada em substituição às expressões cárie da mamadeira e cárie do aleitamento materno (7,26,27). A literatura não apresenta uma definição universalmente aceita para a CLPE (12,14,28), porém a AAPD considera CLPE como a presença de qualquer superfície de dente decíduo cariada (cavitada ou não) ou perdida (devido à cárie) ou obturada em crianças menores de 6 anos de idade. Com essa conceituação, adotou-se a expressão cárie severa do lactente e do pré-escolar (CSLPE) em substituição à cárie rampante quando na presença de pelo menos um dos seguintes critérios: a) qualquer sinal de cárie em superfície lisa em crianças menores de 3 anos de idade; b) qualquer superfície lisa de dente decíduo ântero-superior cariada ou perdida (devido à cárie) ou obturada, em crianças dos 3 aos 5 anos; c) índice de superfície cariada, perdida ou obturada (ceo-s) igual ou superior a 4 aos 3 anos, a 5 aos 4 anos e a 6 aos 5 anos (29). Diferentemente dessa definição, a OMS não considera a presença de lesões não-cavitadas na composição do índice ceo-s (22).
Etiologia
A cárie é considerada uma doença infecto-contagiosa, multifatorial, desencadeada por três fatores individuais primários: microorganismos cariogênicos, substrato cariogênico e hospedeiro (ou dente) suscetível (29). Esses fatores interagem num determinado período de tempo, levando a um desequilíbrio no processo de desmineralização e remineralização entre a superfície dentária e a placa (biofilme) adjacente (5,30).
Microorganismos cariogênicos
Os principais microorganismos causadores da cárie são os estreptococos do grupo mutans, especialmente o Streptococcus mutans e o Streptococcus sobrinus (7,10,30). Esses patógenos são capazes de colonizar a superfície do dente e produzir ácidos em velocidade superior à capacidade de neutralização do biofilme em ambiente abaixo do pH crítico (menor que 5,5), permitindo a dissolução do esmalte (9,10,19). O principal reservatório dos estreptococos do grupo mutans é a cavidade oral, e a infecção da criança depende do nível de infecção da mãe ou da pessoa que mais tiver contato com ela (7,10,29,31). Foram também descritas transmissões horizontais em berçários de creches e intrafamiliares (31,32). A gravidade da CLPE está diretamente relacionada à precocidade da instalação dos estreptococos do grupo mutans na criança (10,30).
Admite-se que essas bactérias necessitem de superfícies não-descamativas para colonizar, porque sua positividade aumenta com o número de dentes erupcionados e com a idade (30). No período denominado “janela de infectividade”, o qual corresponde à erupção dos incisivos inferiores (6 meses) e dos molares superiores (24 meses), há maior aquisição de estreptococos (7,9,10).
Outros microorganismos envolvidos, como os lactobacilos, encontram-se associados à progressão de uma lesão já instalada, e não à iniciação da cárie propriamente dita (8,30).
Dieta cariogênica
A sacarose é o alimento cariogênico mais importante e mais amplamente utilizado pelo homem. Tem o poder de transformar alimentos não-cariogênicos e anticariogênicos em cariogênicos (6,7,19). Outros açúcares envolvidos na cariogênese são a glicose e a frutose, encontrados no mel e nas frutas (6,9,31). Uma simples exposição aos alimentos cariogênicos não é fator de risco para cárie, e sim o freqüente e prolongado contato desses substratos com os dentes (6).
Hospedeiro suscetível
Os fatores de risco do hospedeiro para o desenvolvimento de cáries são: esmalte pós-eruptivo ainda imaturo; presença de defeitos no esmalte, caracterizados especialmente pela hipoplasia (5,9,11,19,30); morfologia e características genéticas do próprio dente (tamanho, superfície, profundidade de fossas e fissuras); e apinhamento dentário (9).
A saliva é o principal sistema de defesa do hospedeiro contra a cárie, removendo alimentos e bactérias, mantendo um sistema tampão contra os ácidos produzidos, sendo um reservatório mineral de cálcio e fosfato (necessários para a remineralização do esmalte) e possuindo substâncias antibacterianas (9,10,19,30). As situações individuais que diminuem o fluxo salivar e, conseqüentemente, sua capacidade tampão, tal como ocorre durante o sono das crianças, aumentam a suscetibilidade do dente à cárie (19,30,31).
A manutenção constante do flúor na cavidade bucal é importante para a resistência do esmalte, interferindo na dinâmica do processo de cárie, reduzindo a quantidade de minerais perdidos durante a desmineralização e ativando a resposta na remineralização (6,11). Na realidade, o flúor não impede o surgimento da cárie, mas é extremamente eficiente em reduzir a sua progressão, devendo ser enfatizado o controle da placa dental e da dieta para maximizar o efeito desse mineral. A freqüência diária de escovação dentária com dentifrício fluoretado e a escovação antes de dormir são importantes medidas para o controle da doença, pois mantêm a concentração de flúor na saliva por um período maior (6).
Assim, a cárie começa com a infecção primária pelos estreptococos, seguida pelo acúmulo destes dentro do biofilme em concentrações patogênicas, secundária à exposição freqüente e prolongada a uma dieta cariogênica. Por fim, a fermentação de açúcares pelos estreptococos no interior da placa dental causa a desmineralização do esmalte, resultando na cavitação das estruturas dentárias (9,11,29-31).
O processo da cárie inicia-se pela descalcificação nos incisivos superiores decíduos logo após a sua erupção, atingindo os molares e caninos decíduos se nenhum controle for realizado (10,11). Enquanto os quatro dentes incisivos superiores decíduos são os mais afetados na CLPE, os incisivos inferiores permanecem íntegros porque são protegidos pela língua e banhados pela saliva das glândulas submandibulares (10,11), conforme observado na Figura 1.
Figura 1 –
Padrão típico de cárie do lactente e do pré-escolar acometendo extensamente os dentes superiores e molares inferiores, sem afetar os dentes ântero-inferiores. Presença de abscesso em incisivo central superior direito decíduo. (Foto: cortesia Brian Palmer, DDS).
Fatores de risco associados
A CLPE é uma doença mais comumente encontrada em crianças que vivem na pobreza ou em condições de carência econômica (7,11,24-26,33-37), que fazem parte de minorias étnicas e raciais (12,38), filhos de mães solteiras (39) e de pais com menor escolaridade, em especial de mães analfabetas (7,26,28,33,37,39,40). Nessa população, a má nutrição ou a subnutrição pré- e perinatal são causas de hipoplasia do esmalte, a higiene oral normalmente é deficiente, provavelmente a exposição ao flúor é insuficiente (12,39), e há maior preferência por alimentos com açúcar (36,41).
Várias doenças estão associadas com a CLPE, entre elas má nutrição (9,24,34,35,42), asma, infecções de repetição, doenças crônicas e uso de medicamentos (9,30,40).
A má nutrição pode causar o aparecimento de hipoplasia do esmalte e, do mesmo modo que a anemia por deficiência de ferro, pode levar à redução da secreção salivar e da sua capacidade de tamponamento (7,1124,35,42,43). A desnutrição infantil ainda é um importante problema no Brasil, especialmente nas Regiões Norte e Nordeste (44), o que poderia contribuir para que, nessas regiões, a proporção de dentes cariados seja sensivelmente mais alta. A média do índice ceo-d (número de dentes decíduos cariados, extraídos ou com extração indicados e obturados) aos 5 anos na Região Norte é cerca de 27% maior que a média da Região Sudeste (15). Também foi observado que a dieta do lactente brasileiro é deficiente em ferro, monótona, com utilização freqüente de biscoitos, espessantes, salgadinhos e açúcar (44), caracteristicamente alimentos de alta cariogenicidade.
O baixo peso ao nascer, incluindo a prematuridade, além de predispor ao aparecimento de hipoplasia do esmalte e alterações salivares (30,43), favorece níveis elevados de colonização pelos estreptococos (45). Nesses recém-nascidos, os defeitos do esmalte encontram-se associados a enfermidades gestacionais, tais como infecção materna, desordens metabólicas (hipoxemia, deficiências nutricionais, hipocalcemia) e à realização de procedimentos médicos (laringoscopia e intubação endotraqueal) (46).
No lactente, a presença de infecções, desordens metabólicas, toxicidade química e doenças hereditárias também é causa do aparecimento de hipoplasia do esmalte (11,30,43).
A gravidade da CLPE aumenta com a gravidade da asma brônquica, tendo como principais causas o uso de medicamentos beta2-agonistas, os quais diminuem a secreção salivar, e o fato dos inaladores em pó e medicamentos orais possuírem açúcar em sua formulação (47). Outras situações que diminuem o fluxo salivar e predispõem ao aparecimento de cárie são o diabetes melito e o uso de outros medicamentos, como anti-histamínicos, benzodiazepínicos, antieméticos, expectorantes e antiespasmódicos (9).
Bicos, chupetas e mamadeiras
A mamadeira é um fator predisponente para CLPE porque seu bico bloqueia o acesso da saliva aos incisivos superiores, ao passo que os incisivos inferiores ficam próximos às principais glândulas salivares e são protegidos do conteúdo líquido pelo próprio bico e pela língua (11). O uso de mamadeiras à noite está associado à diminuição do fluxo e da capacidade de neutralização salivar, o que levaria os dentes a sofrerem estagnação dos alimentos e exposição prolongada aos carboidratos fermentáveis (9,30). Adicionalmente, foi demonstrado que crianças com CLPE dormem um menor número de horas por noite, acordam com maior freqüência e recebem maior número de mamadeiras para alimentação como meio de manejar os problemas do sono (6).
Apesar de o hábito de adoçar a chupeta estar associado à colonização precoce por Streptococcus mutans em pré-dentados (49), uma revisão sistemática não achou associação consistente entre uso de chupetas e desenvolvimento de CLPE, independentemente do tempo de sua utilização e da adição de adoçantes ou não (50).
Papel cariogênico do leite humano, do leite bovino e das fórmulas lácteas para alimentação infantil
Estudos em animais demonstraram que o leite bovino não é cariogênico e, ao contrário, possui ação cariostática (34,38,51). Contudo, não há recomendação para seu uso antes do primeiro ano de vida (52,53). Além disso, as fórmulas lácteas para alimentação infantil, mesmo aquelas sem sacarose em sua formulação, demonstraram ser cariogênicas (54-56). O leite materno, quando comparado com o leite bovino, tem baixo conteúdo mineral, maior concentração de lactose (7 versus 3%) e menor teor de proteínas (1,2 g/100 ml versus 3,3 g/100 ml), mas essas diferenças são provavelmente insignificantes em termos de cariogenicidade (30).
Birkhed et al. demonstraram que o leite humano e o leite bovino são capazes de diminuir o pH da placa dentária, porém menos que a sacarose, e que a fermentação da lactose e do leite bovino é mais lenta. Além disso, os estreptococos somente são capazes de aumentar a fermentação da lactose após o contato freqüente com o leite, podendo ser esta, segundo esses autores, uma das razões para o desenvolvimento de cárie em dentes decíduos pelo aleitamento materno prolongado em livre demanda. Entretanto, para os mesmos autores, o potencial cariogênico do leite, sob condições normais, carece de importância clínica, exceto quando da diminuição dos fatores de defesa salivares, tal como ocorre durante o sono e na presença de xerostomia (57).
Aleitamento materno versus CLPE: razões e contra-argumentações
Gardner et al. (58), Kotlow (59) e Brams et al. (60) foram os primeiros autores a associar a CLPE com o aleitamento materno em relato de nove casos. Os autores preestabeleceram um comportamento da odontologia frente ao aleitamento materno: o de indicar a interrupção da amamentação assim que a criança pudesse beber de uma xícara, ao redor dos 12 meses (10,19). Essas publicações são passíveis de críticas por apresentarem um número muito reduzido de casos, além do fato de que duas crianças utilizavam mamadeira, e, para as sete restantes, não existia menção de defeitos do esmalte, do meio bacteriano e da composição da dieta (61).
A maioria dos autores argumenta que a cárie encontra-se associada ao aleitamento materno quando o padrão de consumo apresenta determinadas características, como livre demanda, freqüência elevada de mamadas ao dia, duração prolongada e, principalmente, mamadas noturnas freqüentes, levando ao acúmulo de leite sobre os dentes, o qual, associado à redução do fluxo salivar e à ausência de limpeza, poderia provocar o aparecimento de lesões (10,16,18,19). Em oposição a esses argumentos está o fato de o leite materno ser liberado por ordenha diretamente no palato mole (62), não sofrer estagnação ao ser sugado (63) e ser difícil de ser quantificado quanto ao volume ingerido pela criança, além de não haver informações na literatura sobre o que é um padrão atípico de consumo para crianças em aleitamento com relação à freqüência alimentar (44,52). Outra argumentação freqüentemente encontrada na literatura é que a adição de sacarose ao leite materno render-lhe-ia cariogenicidade (7,61). Essa afirmação é questionável porque, na prática, é uma situação pouco provável de acontecer, visto que essa adição deveria ser concretizada durante o ato de mamar, ou seja, oferecendo-se à criança algo com açúcar para comer ou beber durante ou imediatamente após o aleitamento (63).
Os vários estudos que investigam a associação entre aleitamento materno e CLPE são apresentados na Tabela 1. A limitação mais importante presente em todos os artigos encontrados que estudam uma possível associação entre leite materno e CLPE é a não-utilização de conceitos de aleitamento materno adotados internacionalmente. Alguns autores não apresentaram definição para CLPE (40,64), outros utilizaram múltiplas definições (12) ou definições próprias (65). Como pode ser observado, a maioria dos autores não encontrou relação entre CLPE e aleitamento materno ou sua duração (12,25-27,40,65-70). Os resultados encontrados freqüentemente contradizem-se uns aos outros, e os achados nem sempre foram reproduzidos. O mesmo foi observado por Valaitis et al. em revisão sistemática de 151 artigos. Esses autores encontraram associação considerada moderada entre aleitamento materno e CLPE em apenas três estudos. Verificaram que a qualidade das pesquisas é relativamente fraca, e as variáveis relacionadas nas pesquisas foram de difícil comparação porque suas definições essenciais eram pobres, inconsistentes, ambíguas ou até ausentes, como, por exemplo, a definição de aleitamento materno em livre demanda, exclusivo e noturno. Por fim, esses autores concluíram que: (1) não há evidências fortes e consistentes de associação entre aleitamento materno e desenvolvimento de CLPE; (2) não existe um período específico para o desmame, devendo-se encorajar as mulheres a continuar a amamentação por tanto tempo quanto elas desejarem; e (3) é necessário desenvolver estudos rigorosos para levar mensagens públicas consistentes que relacionem o aleitamento materno e o surgimento de CLPE (21).
Tabela 1 –
Estudos que avaliaram a associação entre CLPE e aleitamento materno
Em outra revisão sistemática envolvendo 73 estudos, Harris et al. identificaram 106 fatores de risco associados significativamente com a prevalência ou a incidência de CLPE. Dentre estes, apenas três estão relacionados ao aleitamento materno (duração, freqüência e aleitamento noturno) e três ao aleitamento e/ou mamadeira (quando utilizados para alimentar ou para cessar o choro da criança à noite, para adormecer e duração superior a 18 meses). Poucos foram os artigos de alta qualidade metodológica e que utilizaram medidas de validação para os hábitos dietéticos e de higiene oral. A maioria desses trabalhos mostrou que as variáveis devem ser tratadas como indicadores de risco, pois são apenas fatores de risco prováveis ou putativos, e não foi capaz de estabelecer claramente uma relação entre exposição e evento cárie. As associações com cárie mais consistentes foram aquisição precoce da infecção pelos estreptococos, dieta altamente cariogênica, escovação dentária diária precária e hipoplasia do esmalte (5).
Os seguintes argumentos têm-se apresentado como contrários à associação entre o aleitamento materno e a CLPE:
* Há evidências substanciais que relacionam os hábitos alimentares à cárie dentária, sendo consenso geral que o aumento na sua incidência seja resultado do processo de civilização do homem, acarretando alterações nos padrões de vida mais naturais (9,18). Estudos em culturas primitivas cuja norma era o aleitamento materno até os 18 a 36 meses, em livre demanda, inclusive à noite, mostram prevalência extremamente baixa de cárie em crianças (61,78). Estudos clássicos mostram índices de cárie de 0,5% em crianças samoanas (79) e de 1,2% em crianças esquimós (80). Resultados similares foram achados em estudos antropológicos, onde os crânios humanos do período pré-neolítico (12.000 a.C.) não apresentavam cáries dentárias, e os crânios do período neolítico (12.000 a 3.000 a.C.) com dentes cariados pertenciam predominantemente a pessoas idosas (78). No exame de 1.344 dentes decíduos humanos pré-históricos de nativos americanos de Dakota do Sul, Estados Unidos, apenas 19 (1,4%) estavam cariados e somente três apresentavam lesões extensas de cáries (63). Na era moderna, a prevalência encontrada em 16 comunidades nativas americanas, de mesma cultura, foi de 54% (81).
* Em povos que mantêm os hábitos de alimentação ancestrais, a prevalência de cáries é baixa. Entretanto, quando esses grupos entram em contato com a civilização moderna e seus hábitos alimentares, os índices aumentam drasticamente (8).
* Os padrões alimentares das crianças têm mudado dramaticamente nos últimos anos. O consumo de leite tem diminuído, enquanto que o consumo de refrigerantes, sucos e bebidas não-cítricas e de carboidratos tem aumentado (70,82). Esses hábitos foram relacionados com o aumento da prevalência de CLPE (82).
* O tempo de aleitamento materno exclusivo e de aleitamento materno é maior em mulheres de melhores classes sociais, com maior escolaridade (83-85), em mães de mais idade e com relacionamento estável (52); do mesmo modo, a higiene dental é mais adequada nesse grupo (12,39), contrariamente ao que se observa com a prevalência de CLPE, mais comum em classes menos privilegiadas. A introdução precoce de alimentos, o uso de mamadeiras e a preferência por alimentos doces são observados com maior freqüência nas classes menos favorecidas (36,41,44,52,86,87).
* A prevalência do aleitamento materno diminui com a idade, apresentando índices muito baixos na faixa etária dos 12 a 24 meses no Brasil (44) e no mundo (88), contrariamente ao que ocorre com a prevalência de CLPE (12,27,65,67).
* Mesmo com um aumento na prevalência mundial do aleitamento materno (89)e de quatro vezes na sua mediana nas três últimas décadas no Brasil (90), a prevalência de CLPE tem se mostrado constante ao longo dos anos (6,67,73).
* Os recém-nascidos pré-termo e de baixo peso, os quais são de alto risco para CLPE, tendem a ter menor tempo de aleitamento materno (46,91,92), maior utilização de mamadeira e maior consumo de açúcar (46).
* Estudos demonstraram que o leite materno diminui o risco de aparecimento de doenças, tais como gastrenterite, infecções (93), asma, doenças atópicas (94) e diabetes melito (95,96), as quais também têm influência na nutrição da criança. Logo, é de se pressupor que o leite materno poderia proteger contra a cárie, pelo menor aparecimento das doenças que contribuem para a fisiopatologia da doença e pela menor utilização de medicamentos de risco à cárie.
* O leite humano é caracterizado por um complexo sistema de defesa que inibe o crescimento de vários microorganismos, entre eles os estreptococos mutans (97,98). Os anticorpos IgA do leite podem interferir na colonização dos estreptococos pioneiros e, conseqüentemente, na colonização de outras bactérias residentes na boca. Do mesmo modo, o conteúdo de nutrientes, a capacidade de tamponamento e outros mecanismos de defesa presentes no leite materno podem influenciar a microbiota residente (99).
* O leite materno contém uma mistura de oligossacarídeos complexa e única da espécie humana, presente em quantidades ínfimas em pouquíssimos mamíferos, que poderá agir num estágio inicial de processo infeccioso, inibindo a adesão bacteriana às superfícies epiteliais (99). Com isso, pode-se supor que os estudos que utilizaram lactose ou leites de outras espécies animais não poderiam ter seus resultados extrapolados para o leite materno, em razão de sua composição muito diferenciada.
* Qualitativamente, foi demonstrado que o leite humano não é cariogênico, pois a placa dental formada por ele é diferente daquela formada pela sacarose. Além disso, com o leite humano, não há perda mineral clinicamente visível no esmalte, contrariamente ao que acontece com a sacarose (100).
* Experimentalmente, foi demonstrado que o leite humano não é cariogênico porque não provocava queda significativa no pH do esmalte em crianças sob aleitamento materno, com idades entre 12 e 24 meses; permitia um moderado crescimento de Streptococcus sobrinus (ou seja, não inibia nem estimulava o crescimento desse microrganismo); promovia a remineralização do esmalte por meio da deposição de cálcio e fosfato em sua superfície; possuía capacidade tampão muito pobre; e não causava, in vitro, descalcificação do esmalte após 12 semanas. Porém, ao ser acrescentada sacarose ao leite humano, havia o surgimento de cárie em dentina em 3,2 semanas (61).
Em resumo, constata-se que estudos relacionando a CLPE com o aleitamento materno invariavelmente só observaram os fatores inter-relacionados com o surgimento da cárie, deixando de lado aqueles associados à amamentação. Muitos desses fatores atuam como variáveis de confusão, porque, do mesmo modo que interferem no aleitamento materno, também têm influência no surgimento da cárie, como pode ser observado esquematicamente na Figura 2. Nessa figura foram agrupadas todas as situações anteriormente discutidas neste artigo, com as setas cheias representando um efeito promotor e as setas pontilhadas um efeito inibidor para cada situação exposta.
Figura 2 –
Fatores inter-relacionados no aleitamento materno e na CLPE
Posição oficial da Academia Americana de Odontopediatria (AAPD)
Atualmente, a AAPD apóia as recomendações da Academia Americana de Pediatria quanto ao aleitamento materno (de pelo menos 1 ano). Entretanto, assinala que a alimentação noturna freqüente por mamadeira, aleitamento materno em livre demanda e uso freqüente de copos antitransbordantes está associado, porém não consistentemente implicado, com a CLPE. Recomenda que as crianças não sejam colocadas para dormir com mamadeira e que o aleitamento materno noturno em livre demanda seja evitado após a erupção do primeiro dente. Portanto, são necessárias pesquisas futuras sobre os efeitos do aleitamento materno e do consumo de leite humano na saúde oral e no crescimento dentofacial. É importante frisar que essa posição é ambígua e criticável, porque a AAPD não inclui mais o aleitamento materno entre os fatores de risco para cárie (29). Além disso, não há comprovação científica de que o leite humano é cariogênico (61), mesmo quando ingerido em livre demanda e durante a noite (63). Concomitantemente, a posição da AAPD também pode gerar problemas práticos na condução e orientação dos pais daquelas crianças que acordam chorando à noite para serem amamentadas, simplesmente externando uma necessidade que deveria ser preenchida para o bom desenvolvimento da criança. Por fim, devido à natureza irreversível da cárie, um verdadeiro teste em humanos poderia ser considerado antiético (56).
Considerações finais
Apesar de não haver embasamento científico comprovando a associação entre aleitamento materno e cárie, muitos profissionais ainda duvidam da ausência de cariogenicidade do leite humano, perpetuando o mito em que se tornou essa associação. Acreditamos que a amamentação noturna não deva ser desencorajada, assim como nenhuma forma rígida de conduta alimentar deva ser adotada em relação à criança em aleitamento. Nessa faixa etária, a criança está se adaptando aos alimentos complementares, ajustando-se a essas novas formas de alimentação e aprendendo a regularizar seus horários. Portanto, deve-se estimular o aleitamento materno exclusivo até os 6 meses, mantendo-o pelo menos até os 2 anos de idade, sem restrições de horários ou turnos, complementado com outros alimentos adequados para o desmame.
Esta revisão permitiu concluir que não há evidências científicas que comprovem que o leite materno está associado com o surgimento de cárie. Essa relação é complexa e confundida por muitas variáveis, principalmente infecção por estreptococo mutans, hipoplasia do esmalte, ingestão de açúcares em suas mais variadas formas e condições sociais representadas pela educação e nível socioeconômico dos pais.