Aleitamento materno e risco para transmissão viral
Breast feeding and risk of viral transmission Michie CA, Gilmour J Arch Dis Child 2001; 84:381-2 As secreções epidérmicas especializadas foram desenvolvidas como fatores nutricionais e bacteriostáticos há cerca de 120 milhões de anos atrás e entre elas, o leite tornou-se fator crucial para a sobrevivência dos mamífe-ros nos seus diferentes habitats. O leite apresenta diferenças consideráveis em sua composição entre os phyla, espécies e até mesmo em cada nutriz. O período neonatal é o momento de maior risco de infecções para os mamíferos e do ponto de vista evolutivo houve necessidade de balancear a produção e consumo de leite sem aumento da susceptibilidade a infecções. Interação competitiva com vírus, bactérias e protozoários resultou no desenvolvimento de características especiais nas células epiteliais mamárias, que diferentemente de outras células equivalentes, como nas glândulas sudoríparas e salivares, possuem a capacidade de secretar nutrientes, substâncias antibióticas, fatores de crescimento, citocinas inflamatórias e quimocinas que resultam no recrutamento de linfócitos e células mielóides da circulação para o leite. Desta forma o leite não possui apenas funções nutritivas, mas uma complexa composição de células, membranas e moléculas e nosso desconhecimento sobre essas funções se tornaram evidentes com o aparecimento da pandemia do HIV. A partir dos anos 60 foi demonstrado que o leite era fonte de transmissão de vírus do sarcoma, da leucemia Moloney e tumores mamários para os camundongos em aleitamento e, em outras espécies, foi demonstrada a transmissão de lentivírus. No homem, a transmissão de retrovírus RNA, incluindo o HIV-1, HTLV-1 e HTLV-2 já foi demonstrada, ao contrário do vírus HIV-2, de menor virulência, que não é transmitido. O vírus da citomegalia é o mais freqüentemente detectado no leite e a reativação das células epiteliais infectadas na lactação precoce promove a disseminação de partículas virais infectantes. Outros vírus podem ser transmitidos aos recém-nascidos se a mãe estiver em fase aguda de doenças como rubéola, herpes simplex e raramente hepatite B. O vírus Epstein-Barr e Herpes Vírus 6 podem ser encontrados no leite humano, mas até o momento, raramente foram descritas crianças amamentadas infectadas por estes vírus. O vírus da hepatite C não foi detectado no leite humano, devendo ser baixa sua transmissão por esta via, a menos que a nutriz possua alta carga deste vírus. Para o pediatra seria importante o conhecimento das taxas máximas de transmissão destes organismos no leite e relatos em várias populações mostram taxas de infecção para o citomegalovírus entre 40 e 76%, rubéola de 25 a 50%, HTLV-1 de 80% e HIV-1 de 5 a 66%. Uma meta-análise recente estimou taxa de 14% (intervalo de confiança de 95% – IC 95% = 7 a 22%) para HIV-1 e de 26% (IC 95% = 13 a 39%) para casos acidentais. Essas taxas variáveis de transmissão apenas demonstram a complexidade desta via de infecção que deve ser melhor entendida. É surpreendente que o leite materno não seja mais infectante, especialmente com o volume consumido diariamente pelo lactente, o que faz supor maiores fatores protetores a serem esclarecidos. Vários fatores relacionados à composição do leite podem facilitar ou inibir a trans-missão de vírus pelo leite materno (Tabela 1). A própria composição do leite é influenciado pela gestação, tratamento com corticosteróides e fatores psicológicos. …
Tabela 1 – Fatores facilitadores e inibidores da transmissão de vírus pelo leite materno
Fatores facilitadores
Fatores inibidores
• Carga viral e contagem de células infectadas no leite
• Anticorpos antivirais
• Abscessos e mastite instalada
• TGF- ß
• Mastite sub-clínica
• Altos níveis carotenóides
• Infecção viral múltipla da nutriz
• Lactoferrina
• Aleitamento misto
• Inibidores de Protease
• Prematuridade
• Linfócitos T
• Úlceras na boca
• Lisozima e mucinas
• RANTES e GM-CSF
• Drogas anti-virais
Fatores duvidosos: nutrição materna (anti-oxidantes, lípides, elementos traço, vitaminas), período da lactação
Em relação à infecção pelo HIV estudo recente na África do Sul sugere que o aleitamento misto com leite materno e fórmulas parece ser facilitador da transmissão deste vírus. Esse conhecimento é essencial para países em desenvolvimento, onde o aleitamento materno exclusivo pode ser a opção mais segura, particularmente se água limpa não é disponível. Retrovírus podem infectar células do epitélio mamário antes mesmo do parto, podendo ser encontrados livres no leite ou infectando monócitos do leite, que correspondem a 50% das células do leite materno e com capacidade de fagocitar e apresentar antígenos. Essas células maternas podem ser potenciais transportadoras de vírus da circulação materna ou tecidos linfóides para o intestino do neonato. Além disso, muitos estudos demonstram que alguns tipos de HIV utilizam receptores de quimocinas CCR5 para infectar os macrófagos e talvez os vírus veiculados pelo leite materno atinjam células intestinais do neonato que não possuam essa quimocina (por exemplo células M e enterócitos) facilitando sua infecção. Mais estudos devem ser realizados para se conhecer o preciso papel das células do leite humano na infecção pelo HIV. As infecções mamárias clínicas ou sub-clínicas promovem aumento da concentração de sódio, número de células, citocinas inflamatórias, enzimas e redução da produção do leite. Estudos em várias comunidades sugerem taxas de transmissão para o HIV, quando ocorrem tais infecções, de 20 a 30%. Outra questão fundamental refere-se à possibilidade de reduzir ou eliminar os vírus do leite humano. Células infectadas por vírus poderiam ser removidas do leite, mas partículas virais são difíceis de eliminar. Pasteurização a 62,5ºC destrói partículas virais, mas também modifica a composição do leite. O mais promissor modo de eliminação de retrovírus do leite materno é o estudo com dose única de Nevirapina, um inibidor da transcriptase reversa não nucleosídeo, que demonstra essa ação, permitindo o aleitamento seguro destas mães. Redução de preço ou gratuidade deste agente por organizações não governamentais e companhias farmacêuticas em muitos países africanos têm tornado possível esse trata-mento, mas o uso indiscriminado de apenas um agente poderá desenvolver resistência ao mesmo. Os pediatras deverão estimar os riscos e benefícios possíveis da transmissão vertical dos vírus pelo aleitamento. Bancos de leite com leite pasteurizado e práticas higiênicas adequadas podem ser soluções locais, mas requerem vigilância constante. Talvez a monitorização do número de células, concentração de sódio e bacteriologia devam fazer parte do controle de qualidade do leite, mas de maneira geral deve ser orientado que o aleitamento materno é uma forma segura de nutrição infantil, mas nas mães que não apresentam infecção viral ativa. … Comentários Apesar do reconhecimento de inúmeros fatores protetores do leite humano, com ações específicas contra agentes infecciosos, especialmente vírus (entre eles os lípides na inativação de vírus com envelopes lipídicos, as macromoléculas, na inibição da ligação nas membranas celulares e penetração viral e os inibidores de tripsina que possuem a capacidade de inibir o rotavírus), o aleita-mento materno pode constituir uma fonte de infecção para o recém-nascido. Entretanto, existem dificuldades para definir de modo categórico esta via de transmissão na medida em que: a) o aleitamento envolve contato íntimo e a trans-missão pós-parto pode estar relacionada com outras fontes como, a exposição ou ingestão de aerossóis oriundos de mãe com tuberculose bacilífera, ou o contato direto com as lesões de pele ou a infecção pela via fecal-oral, dependendo do microrganismo e seu modo de transmissão; b) em geral, as análises de risco baseiam-se em estudos epidemiológicos com grande número de crianças envolvidas, onde são comparadas as taxas de infecção entre as amamentadas ao seio materno versus as alimentadas com fórmulas lácteas artificiais ou ainda; c) relatos de crianças que adquirem a infecção no período pós-natal, onde o aleitamento pode ser considerado a fonte de contaminação.
Quadro 1 – Momentos de transmissão de algumas infecções virais e conduta acerca do aleitamento
Vírus
Modo de transmissão
Conduta
Observações
Congênita
No parto
Pós-natal
Evitar o aleitamento
Citomegalovírus (CMV)
++
++
++ (leite)
NÃO
Observação cuidadosa do recém-nascido pré-termo: risco aumentado de doença mais grave
Hepatite B (HBV)
+
++
+ (leite)
NÃO
Iniciar a imunoprofilaxia ao nascimento:(leite) Vacina e imunoglobulina
Hepatite C (HCV)
+
+
+ (leite)
INDEFINIDO
A decisão deve ser feita segundo discussão entre a mãe e os profissionais de saúde.
HIV
+
++
+ (leite)
SIM
Providenciar fórmula infantil e orientar preparo adequado
Herpes Simples (HSV)
+
++
+ (lesões)
NÃO
A menos que lesões ativas no seio ou mamilo ou proximidade.
HTLV I
–
–
++ (leite)
SIM
Risco de tumor de 1 a 5% ao longo da vida, segundo estimativas do Japão.
RUBÉOLA
++
–
++ (leite)
NÃO
A infecção na criança é assintomática, tanto se a mãe teve infecção natural ou pós-vacinal.
VARICELA
++
+
+ (lesões ou respiratório)
NÃO
Não se sabe se o vírus é secretado no leite humano.
Notas: – (raro ou não descrito) + (comum) ++ (freqüente, predominante)
… Este artigo de revisão contribui para a atualização deste tema. Constitui-se um dilema aflitivo para o pediatra, cujo papel é fundamental no estímulo ao aleitamento materno, a definição da conduta acerca da suspensão ou não do aleitamento quando se identifica uma nutriz com infecção viral ativa. Ao rever este tema, quando do preparo de um seminário do Curso de Pós-Graduação do Departamento de Pediatria da FMUSP, no início deste ano, foi possível elaborar uma sinopse onde estão destacados os momentos possíveis de transmissão ao feto e recém-nascido de alguns vírus relevantes, a conduta frente ao aleitamento materno nestas circunstâncias e algumas outras observações (quadro 1). Esta análise pode ser aprofundada através da consulta a referências bibliográficas listadas ao final, destacando-se que as informações mais recentes na literatura confirmam a presença do vírus da Hepatite C no leite das mulheres infectadas e que, a decisão de amamentar deve ser discutida em particular com cada caso pois, não se sabe ao certo o papel do aleitamento na transmissão deste vírus para a criança.
Tradução: Dr. Antonio Carlos Pastorino
Comentário: Dra. Heloisa Helena de Sousa Marques
Referências Bibliográficas Goldfarb J. Breastfeeding. AIDS and other infectious diseases. Clin Perinatol 1993; 20: 225-43. Oxtoby JM. Human immunodeficiency vírus and others viru-ses in human milk: placing the issues in broader perspective. Pediatr Infect Dis J 1988; 7: 825-35. Ruff AJ. Breastmilk, breastfeeding and transmission of viruses to the neonate. Semin Perinatol 1994; 18: 510-6. Ruiz-Extremera A, Salmeron J, Torres C, De Rueda PM, Gimenez F, Robles C, Miranda MT. Follow-up of transmission of he-patitis C to babies of human immunodeficiency virus-negative women: the role of breast-feeding in transmission. Pediatr In-fect Dis J 2000; 19: 511-6.