“Esperanças, desespero e um sonho”
Milton Hatoum*
Espero navegar de novo no Negro, o rio da minha infância, e um dos mais belos da Amazônia brasileira.
Espero que os ministros que professam uma fé fervorosa na irracionalidade sejam mais racionais e menos ideológicos e ressentidos.
Espero que o emprego formal aumente, e que a desigualdade social diminua.
Espero que as ofensas e agressões aos artistas, humoristas, cineastas, cientistas, professores, intelectuais, jornalistas e minorias étnicas cessem de uma vez por todas.
Espero que cessem os incêndios criminosos na floresta, a grilagem de terras indígenas, o assassinato de indígenas, e de pobres, quase todos negros, todos cidadãos brasileiros.
Espero que haja mais compostura nas redes sociais: a polarização política gera mais ódio, violência, intolerância.
Espero reler “Angústia”, do velho Graça, e “O castelo”, de Kafka.
Espero saborear muitas kaftas com hummus, e lutar por um ensino público de qualidade.
Espero que o país seja mais amado. E muito menos armado. E que o humor venha de todos os lados, da frente e dos fundos.
São esperanças vãs? Talvez, mas não há esperança sem reflexão e ação. “Nossas armas são fracas: caneta e papel”, escreveu (com ironia) Graciliano Ramos.
Alguém sonhará que três anos serão três dias, e acordará otimista. Sonhar é agir com paciência e lucidez, saber superar o fosso do tempo perdido e transformar o que for possível. O tempo perdido será transfigurado em arte: tempo reencontrado.
Ser otimista ou pessimista depende da leitura crítica da realidade e do contexto histórico. Em todo caso, sou um otimista desesperado. Para isso, basta para ter
um fio fino de esperança.
*Milton Hatoum estreou como escritor em 1989 com o romance “Relato de um certo Oriente”, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria. Também escreveu, entre outros, “Dois irmãos”, igualmente premiado pelo Jabuti e adaptado para a TV, o teatro e os quadrinhos, “Cinzas do Norte”, que faturou o Portugal Telecom e mais um Jabuti, e “Órfãos do Eldorado”, que virou filme.
Texto criado a convite do Globo que expressou o seu desejo para 2020, sem esquecer o Brasil de 2019.