17 de novembro – Dia mundial da Prematuridade.
O que comemoramos?
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, somos atualmente quinze milhões de nascimentos prematuros a cada ano em nosso planeta. Desses, um milhão e cem mil morrem. Fazendo as contas chegamos ao impressionante numero de vinte e oito nascimentos antes do tempo a cada minuto onde dois deles não sobrevivem. A grande maioria em áreas pobres da Ásia e da África.
A Organização Mundial da Saúde faz promover neste sábado dia 17 o Dia Mundial da Prematuridade com objetivo de discutir ações globais que possam enfrentar essa temática e encontrar caminhos capazes de reduzir as desastrosas consequências socioeconômicas desta realidade cruel, iluminando estratégias que reconduzam a humanidade em direção ao nascimento a termo e bem como capazes de cuidar com respeito integral do nascimento prematuro imprevinível, imprevisível e irremediável.
Grupos aqui no Brasil propõem o uso da cor roxa para caracterizar adesão à causa da prematuridade e o envolvimento na correção de suas consequências.
Mas o que exatamente comemoramos nesse dia?
O nascimento prematuro atropela quase sempre de surpresa a família do bebê e faz, junto com este momento, nascer também uma família prematura.
Ao lado da dor e da trajetória muitas vezes inglória de bebes nascidos prematuramente em seu caminho para a saúde junto à sua casa, encontramos o percurso arenoso e sacrificante de famílias inteiras exiladas em sua própria dor a espera do filho de volta ao lar.
E como pano de fundo dessa realidade a participação das Unidades Neonatais e de seu modus operandi.
Aqui no Brasil os bebês que nascem antes do tempo se dividem entre aqueles que não encontrarão socorro algum, aqueles outros que serão acolhidos pelas instituições publicas e aquele pequeno número que seguirá seus dias em Unidades Neonatais privadas, sob o manejo de tecnologias modernas e seguras, onde já não existem mais os mistérios do tratar e onde a ciência permite que nascimentos com pouco mais de 300 gramas sobrevivam.
O custo financeiro desta modalidade de cuidado alimenta uma verdadeira gama de empresas cujos produtos são vendidos a peso de ouro aos hospitais. O tratamento de um bebe que nasce antes do tempo é hoje um grande negócio que não pode dar errado dado às grandes somas em equipamentos e medicamentos envolvidos.
A necessidade cada vez maior de profissionais capacitados em cuidar desses bebês por sua vez fez nascer um grande mercado de recursos humanos especializados em neonatologia, e formando esses profissionais uma imensa rede de cursos dos mais variados níveis, bem como de eventos (sob apoio dos mais variados patrocinadores e suas motivações inconfessas), bem como publicações sobre o tema: livros, artigos, revistas, sites…
É gigantesco o universo envolvido com o nascimento prematuro.
Ajustando o foco do nosso olhar, para o bebê em tratamento na Unidade Neonatal vamos ter contato com uma dimensão mais apropriada do que se poderia chamar de a crise da prematuridade.
Nascer prematuro no serviço público no Brasil significa torcer para ter vaga numa Unidade conveniada. Isso inclui o enfrentamento de um sem numero de laudos e contatos com centrais de regulação de vagas que parecem não reconhecer a diferença entre um prematuro grave e uma condição de menor risco: o calvário e a espera são insensíveis à dor e à vida. Uma vez assegurada a vaga, agilizar condições adequadas de transporte que incluem equipamentos e arregimentar pessoal capacitado para intervenções pontuais a fim de garantir a estabilidade possível dos parâmetros clínicos durante a transferência. Esse contexto é por si só responsável por favorecer ou evitar uma serie de comprometimentos que podem durar uma vida inteira para esse bebe. Mas nem sempre acontece assim. O tempo de espera por uma vaga, as condições de transporte, a inclusão de uma equipe habilitada ao manejo nem sempre é fácil. O drama começa ai.
Uma internação em uma Unidade Neonatal por sua vez é um país de dimensões continentais, tamanhas são as diferenças de metodologias de cuidado e a quantidade, complexidade e qualidade do equipamento envolvido.
Uma pequena parcela desses quinze milhões de nascimentos prematuros no planeta tem à sua disposição o que há de mais moderno e seguro em matéria de tecnologia. Resta à imensa maioria a boa vontade dos profissionais, a adaptação, a criatividade, o empirismo… Estamos longe, muito longe do dia em que as chances de sobrevivência são equivalentes. Para uns está reservado um pool de intervenções seguras e pontuais. Aos demais resta o impreciso. E seguir é preciso.
O protagonista e homenageado pela data de hoje, o bebê que nasceu antes do tempo que era para ser, definitivamente, com poucas exceções, é recebido em um ambiente completamente despreparado para acolhê-lo em harmonia. Excessivos, luz, som, contatos, estímulos dolorosos ou não, acompanhados da ausência materna e da distancia da família formam um substrato perfeito para a criação de lapsos cruéis cujas consequências irão muito além daqueles dias de UTI: distúrbios variados de comportamento, aprendizagem, afetividade, sono e um envelope psíquico que envolve sua vida com tantas lembranças de dor e desrespeito, fazendo do homenageado do dia um sobrevivente que paga com sua própria qualidade de vida as custas desse cuidado descuidado.
Mas e seus familiares? Como passam esses dias sua mãe, seu pai, avós, irmãos e tios? Que atenção a Unidade Neonatal lhes dispensa? Por quanto tempo, com que frequência e envolvendo que profissionais com que formação essa família é cuidada? Quem cuida das mães de UTI e como cuida? E quando vitima de um descuido que a negligência, como atravessa esses dias a família prematura? Apoia-se em si mesma ainda que despedaçada, tirando força de cada fragmento quebrado pela dor e se remenda reinventando a resiliência compulsória, visto que não encontra outra saída a não ser crescer daquela dor para se preparar para o filho submerso em outras dores enquanto os dois aguardam aflitos a hora do reencontro.
Esse cenário desolador acabou lançando sobre o planeta, como numa modalidade neonatal de iluminismo, uma alternativa colombiana para a crise da prematuridade. A metodologia mãe canguru descobriu o time imbatível, o dream team do cuidado neonatal, ao fazer jogar o mesmo jogo o amor, o calor e o leite materno que desde 1979 ate os dias atuais tem se transformado no único grande motivo de alegria e comemoração para este dia 17 de novembro porque representa a redenção da ciência quando reescreve a técnica e a tecnologia com tonalidade materna, insubstituível, inadiável, incomparável…
A legislação no Brasil ainda não se sensibilizou para a causa prematura. Mães gastam parte vital de uma licença maternidade que era pra oferecer a ela e ao seu filho tempo juntos em visitas em UTIs. Visitas com hora de começar e acabar, como se seus filhos não fossem seus filhos, mas prontuários de uma Unidade. E quando o menino recebe alta, quando sua maternidade integral pode enfim começar livre das normas e dos tutores compulsórios de seus filhos já é hora de voltar ao serviço.
O que comemoramos então exatamente hoje?
Grupos sugerem o uso da cor roxa para lembrar essa data.
Desejo sucesso a essas iniciativas, mas meu coração me sugere outra coisa e não saberia desrespeita-lo: a partir de hoje todos os dias são 17 de novembro e não há outra data a não ser essa, porque celebra a presença diária de bebes humanos, dignos em sua integridade, desrespeitados em sua condição sociopolítica e biológica, amados pelos seus.
Que nossos filhos prematuros possam no 17 de novembro que se perpetuarão desde aqui até o futuro em diante, colher frutos de humanização no cuidado, inclusão da família em seus dias desde o nascimento e garantir seus direitos políticos integralmente desde a vaga numa unidade de saúde até o cuidado integral para com sua mãezinha, reescrevendo a licença maternidade, a dor e a vida.
Que a cor roxa se transforme então na cor azul celeste porque celeste é o encontro entre a dor e o alivio possível, sob a misericórdia de Deus para sempre.
Que assim seja.
Foto: Luís A. Mussa Tavares