A saída é VALORIZAR a PATERNIDADE…
Assumir faz bem
Basta pagar pensão?
A sentença que pune financeiramente um homem por abandono afetivo reacendeu esse debate, mas ela é apenas mais uma na sequência de decisões sobre o tema ao longo dos anos
Gláucia Chaves
Publicação: 03/06/2012
Ao longo da história, a figura paterna sofreu transformações. O pai já foi visto exclusivamente como provedor da família, responsável pelo sustento e por manter a ordem em casa. Já foi o comandante inalcansável, a quem os filhos batiam continência e só podiam recorrer quando precisassem resolver questões palpáveis, como falta de dinheiro. O mundo mudou, a sociedade também. O homem que ainda carrega o ranço da paternidade fundada apenas no fator financeiro convive com muitos que já não se satisfazem em garantir só o prato de comida: eles querem proximidade.
Mas o quão profundo é o abismo que separa o pai ansioso por laços afetivos daquele que se abstém desse contato, ainda que pague pensão alimentícia? Em abril deste ano, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão que aumentou o volume dessa discussão. Acusado de abandono afetivo, um homem foi condenado a pagar R$ 200 mil à filha, como indenização pelos anos em que não cumpriu o papel de pai. Magoada, a autora da ação alegou que o motivo de ter levado a questão à justiça foi o tratamento diferenciado que recebeu de seu progenitor, em comparação aos irmãos, frutos de um segundo casamento do pai. Tal sentença não apenas suscita a polêmica sobre uma possível “monetarização” do amor, mas leva a outras questões: qual é hoje o papel do pai? Qual a importância da paternidade para o crescimento saudável de uma criança e para a formação de um adulto?
A Revista do Correio procurou pesquisas e ouviu especialistas na área jurídica e psicossocial para refletir sobre a importância do afeto paterno nos dias atuais. As opiniões nem sempre coincidem, mas de modo geral convergem para um fato: sim, filhos com a figura paterna presente têm mais chances de terem um desenvolvimento saudável e uma vida afetiva bem-sucedida. Também é verdade que os pais estão procurando ter um novo tipo de relação com a prole, apesar de ainda haver um número absurdo de crianças registradas sem o nome paterno. Entenda por que essa aparente contradição é mais uma etapa no longo processo de mudança em direção a uma paternidade consciente.
Choque de gerações
Matheus e Tiago — de 6 e 2 anos, respectivamente — são criados com fartura de carinhos, beijos e abraços. Eles nem imaginam que o pai, hoje com 50 anos, teve uma infância bem diferente da deles. Criado no interior de São Paulo, o administrador de empresas Ademir Maranho veio de uma família em que os pais não tiveram acesso a conhecimentos acadêmicos. “Meu pai teve que trabalhar na lavoura, não teve como estudar”, explica. Quando a vida ficou um pouco menos apertada, o clã migrou para a capital paulista. O pai passou a ser sapateiro, enquanto a mãe arrumou um emprego fora de casa. Ademir passava os dias com a avó.
Ter comida na mesa, dinheiro para pagar as contas, roupas para vestir e, se tudo desse certo, alguma reserva financeira para eventualidades era a prioridade absoluta dos donos da casa. “O toque e o afeto existiam, mas de uma forma bem rude”, relembra Ademir. A hierarquia também era cuidadosamente delineada: brincar na rua, tudo bem. Chegar em casa depois do pai, jamais. “Quando ele chegava do trabalho, dava um assobio no portão”, descreve. “Tínhamos que voltar correndo porque entrar em casa depois dele era complicado.”
Ainda que demonstrações mais efusivas de afeto fossem escassas, o pai de Ademir prezava pela companhia dos familiares. As constantes visitas a primos, avós e demais parentes eram obrigatórias. “Ele reclamava bastante quando não era visitado por esses mesmos parentes”, completa. “Era tudo muito família. Isso, para ele, era precioso.”
O único momento em que os dois ficavam juntos de verdade era na pescaria — atividade que faz parte da rotina de Ademir até hoje. Nessas ocasiões, o silêncio para não espantar os peixes servia também como uma espécie de contrato velado entre os dois: nada precisaria ser dito ou feito, apenas a presença de ambos era suficiente. A agitação da adolescência, contudo, quebrou a tranquilidade. Ademir enveredou por movimentos estudantis, grupos da igreja e outras distrações que acabaram fazendo com que o tão esmerado convívio com a família fosse deixado de lado. O pai morreu em decorrência de um enfisema pulmonar após a emocionante partida da Copa do Mundo de 1986, em que o Brasil foi eliminado pela equipe francesa nas quartas-de-final.
O jeito contido e reservado do pai não causou mágoas. A afetividade daquele que foi criado em um ambiente hostil, em que a prioridade era sobreviver, foi demonstrada de maneira igualmente discreta. “Ele sempre usou chapéu. Na minha formatura, ele queria um chapéu novo, então, rodamos por São Caetano do Sul, São Bernardo e São Paulo atrás de um, mas não encontramos.” A odisseia, embora fracassada, representou um dos momentos mais marcantes para Ademir. “Ele acabou indo com o velho mesmo, mas significou muito para mim o fato dele querer ir bem arrumado.”
Várias sentenças e uma história
Se fosse possível transformar sentimentos em cifras, quanto valeria um abraço? Quanto custaria um “eu te amo”? Em abril, o STJ condenou um homem a pagar R$ 200 mil à filha pelo chamado abandono afetivo. Ainda que nunca tenha se recusado a pagar a pensão alimentícia da primogênita, hoje com 28 anos, o pai, de acordo com a ministra Nancy Andrighi, da Terceira Turma do STJ, não deu suporte emocional para que a filha se desenvolvesse como os demais irmãos. Ou seja, o dinheiro do pai não foi suficiente para suprir as demandas sentimentais da mulher. Diante da sentença, há uma série de interpretações. Será que tal decisão cria um precedente? Como os tribunais vão se posicionar a partir de agora?
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família e o primeiro advogado a entrar com o pedido de indenização por abandono afetivo no país, diz que há três fortes argumentos contra esse tipo de ação. O primeiro diz respeito à tentativa de “obrigar” um indivíduo a amar outro, por meio da coação jurídica. O segundo é a “monetarização” do afeto: é possível estipular um valor que pague o abandono? A terceira ressalva é o resultado de tal iniciativa, uma vez que uma ação como essa pode acabar definitivamente com qualquer possibilidade de aproximação entre pais e filhos. Para Pereira, contudo, o que está em jogo não é o sentimento de afeto, mas as obrigações de todo homem que se torna pai. “Claro que não se pode forçar ninguém a ter apreço por outra pessoa, mas ser pai é cuidar, zelar, impor limites. O pai que não faz isso tem que ser responsabilizado”, defende.
Pereira ressalta que não se deve confundir um processo como esse com a banalização do abandono em qualquer tipo de relação. “Quando um filho vai à justiça, é porque passou a vida inteira mendigando o amor do pai”, comenta. “É claro que sofrimento e dor fazem parte da vida, mas é diferente com o abandono. Nesses casos, o Estado deve entrar no meio.” Luciano Lima Figueiredo, advogado especialista em direito da família e mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a tese de abandono afetivo não é algo totalmente novo. Até então, contudo, ele diz que o poder judiciário era reticente. “Agora, a decisão do STJ mostra que ele abraçou a tese”, comenta.
Assim como Rodrigo, ele diz que um dos maiores argumentos contrários à medida é a confusão que se faz pela possibilidade de indenização por pura ausência de afeto, em qualquer situação. “É impossível indenizar o abandono afetivo. Se assim fosse, as pessoas poderiam mover ações por término de namoro longo”, exemplifica. Mesmo com o apoio financeiro dado pelo pai, o advogado salienta que um dos principais motivos para a condenação foi de questão moral. “O provimento material envolve tudo o que é necessário para uma vida digna, como vestuário, lazer e manutenção da vida social”, completa.
Por analogia, o advogado diz que não acompanhar o desenvolvimento intelectual do filho e deixar de prestar assistência em períodos complicados da vida poderia até mesmo ser comparado ao crime de abandono de incapaz. O problema é que não há ainda critérios para definir exatamente o que é o abandono afetivo. “Não existem leis no Brasil que tragam os requisitos necessários para verificar essa questão”, reforça. Na falta de diretrizes específicas, o desfecho de cada caso fica a cargo do juiz — que analisará todos os aspectos envolvidos em cada situação, como provas de que o pai foi mesmo negligente ou se ele está sendo vítima de uma mãe rancorosa e pouco honesta.
Leia a íntegra desta reportagem na edição nº368 da Revista do Correio Braziliense..
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