O melhor parto do mundo
Em casa ou no hospital, por via normal ou por cesárea,
parir
angústias
Maria
Muitos livros de obstetrícia se referem ao trabalho de parto de maneira peculiar: o útero é chamado de motor; o bebê, de objeto, e a vagina, de trajeto. Uma teoria que enxerga o nascimento de uma criança como um acontecimento mecânico, que deve obedecer a uma linha de montagem pré-estabelecida – seja ele um parto normal ou uma cesariana. É com essa base acadêmica que muitos obstetras, até os dias de hoje, se formam e ingressam no mercado de trabalho. Não faltam estudos ou pesquisas que comprovem a necessidade latente de repensar o momento do parto, nem empecilhos que impeçam uma mudança cultural em prol da chamada humanização do nascimento. Mas, se muitas mulheres e profissionais já entenderam o recado, a grande maioria continua à mercê do sistema, seja por falta de interesse ou de informação.
Mais e mais mães seguem tendo seus filhos com as mãos literalmente atadas às macas dos hospitais, algumas vezes dopadas, com os rostos encobertos por um pano
“O modelo atual tem uma série de rotinas e procedimentos que são anti-humanizantes. Por exemplo: chega a uma maternidade uma grávida normal, saudável, em trabalho de parto espontâneo. A primeira coisa que a equipe faz é levá-la na cadeira de rodas, para uma sala isolada, longe da família”, observa o ginecologista e obstetra
“Colocam um soro nessa mulher, deitam-na numa cama e a proíbem de comer ou beber qualquer coisa. São rotinas sem evidências científicas que as sustentem, e que produzem um dano muito grande à mulher”, continua.
Segundo o especialista, se a gestante chega ao hospital dessa forma, recebe a mensagem de que está doente, inválida e dependente daqueles profissionais. “Isso, do ponto de vista da assistência ao parto, é uma catástrofe, pois tira da mulher a capacidade de conceber o filho em plenas condições. Tira seu papel de protagonista e, muitas vezes, impede que o parto ocorra de forma saudável”, acredita.
Ao pensar no que passam diariamente tantas mães, é preciso considerar também o percurso da criança que chega ao mundo e a forma como nos acostumamos a recebê-la. “Na hora em que o bebê nasce, ele está completamente alerta. É uma página em branco. E o que acontece a partir daquele momento é o que vai ser impresso nele. Suas primeiras impressões do que é o mundo”, analisa a pesquisadora e médica sanitarista e
epidemiologista Daphne Rattner, da International Motherbaby Childbirth Organization.
Segundo Daphne, esse primeiro momento surge como uma ruptura, um sequestro. Em vez de ir para o colo materno, de reconhecer a mãe, de mamar e ser acalentado, o recém-nascido vai, mesmo que perfeitamente saudável, para as mãos de médicos e enfermeiros que farão uma série de intervenções. “Claramente, existe algo errado com esse sistema”, afirma a psicóloga e doula Clarissa Kahn.
A Revista ouviu médicos, doulas, mães, psicólogos e enfermeiras que explicaram a lenta, porém revolucionária, mudança desse primeiro momento da vida de um ser humano, com o resgate de práticas que remontam à própria origem da humanidade. Sem preconceitos e com franqueza, a busca pelo melhor parto do mundo, seja ele qual for, está apenas começando.
Menos mecânico, mais humano
A chamada humanização propõe uma mudança de paradigmas que transformaria um parto em um momento diferente do qual estamos acostumados. A regra é a redução das intervenções, o fim da pressa, o respeito absoluto ao momento que pertence aos pais e à criança. E isso não se restringe ao parto normal.
A cesariana também pode se tornar menos traumática, com o tempo livre para curtir carinhos com o filho imediatamente após o nascimento. Eles trocarão olhares e a mãe poderá oferecer o peito no momento ideal para primeira mamada, uma vez que é na hora do nascimento que o bebê tem o maior instinto de sucção. O cordão umbilical permanecerá intacto até que pare de pulsar, dando tempo para que a respiração se inicie com suavidade. O vérnix (aquela camada branca que cobre o bebê) não é tirado com esfregões, uma vez que é entendido o seu papel de proteção, de regulação da temperatura e de hidratação da pele. Ao longo dessa reportagem, veremos como esse movimento que prega a humanização do parto, qualquer que seja ele, tem alterado o momento do nascimento.
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Normal, mas com assistência
Em grande parte dos hospitais, a mulher em trabalho de parto passa por uma série de intervenções desnecessárias e, muitas vezes, prejudiciais. Em
“Essa noção fez com que obstetras em muitos países concluíssem que a assistência durante o parto normal deveria ser similar à assistência ao parto complicado”, afirma o documento da OMS. Assim, transforma-se um evento fisiológico natural em um procedimento médico, “interferindo na liberdade da mulher de viver a experiência do nascimento de seus filhos a sua própria maneira”.
A proposta é um parto normal, sem intervenções — entende-se por normal o parto espontâneo, no qual o bebê nasce em posição cefálica de vértice, entre a 37ª e a 42ª semana de gestação, com mãe e filho em boas condições. Assim ocorreu com a empresária Jaqueline Siciliano, 30 anos. A jovem preferiu ter o filho em casa. “Sempre quis ser mãe. E lembro que ouvia muitas histórias ruins sobre partos normais. Mas quando engravidei fui me informando, lendo muito, e não tive dúvidas de que essa era a melhor opção. Foi a melhor escolha que fiz na vida. O parto deixou de ser uma coisa assustadora e passou a ser algo natural, sublime”, conta.
O parto de Jaqueline foi guiado por seus próprios instintos. Aconteceu no closet do quarto do casal, na presença do marido, do médico – que observava –, da doula (profissional que auxilia na hora do parto) e de uma amiga. “Quem quer ter um parto normal deve procurar um profissional que se encaixe perfeitamente nesse perfil. Meu médico foi lá em casa antes do parto, conheceu a gente melhor, tomou suco e comeu bolo. É outra relação. Ele não interveio. Estava ali para uma emergência. Sem pressa. E isso foi muito especial. Pari meu filho sozinha, como deveria ser em todo parto saudável.”
A melhor parte, segundo ela, foi pegar a filha no colo, com o cordão umbilical pulsando e amamentá-la naquele exato momento, sentindo, com o marido, Felipe Siciliano, 29 anos, as sensações do primeiro momento do resto da vida da pequena Isabel, hoje com 11 meses.
Mas, para que a experiência alcance tal plenitude, é necessário criar condições favoráveis à gestante, permitindo o desencadeamento de uma série de complexas reações químicas únicas, diferentes das que ocorrem em um parto repleto de intervenções. “O cérebro da mulher grávida trabalha de uma forma diferente. O sistema límbico aumenta a atividade e o neocortex diminui. A assistência ao parto deve entender isso”, explica o obstetra Marcos Leite. Tudo o que ativa o neocortex deve ser evitado no momento do parto: barulho, medo, luz forte, falta de privacidade e dor. Funciona exatamente como na hora da relação sexual. “O orgasmo seria comparado ao momento do nascimento. É o sistema límbico que cria condições para ambos os momentos. Uma mulher conseguiria sentir um orgasmo em um lugar onde ela não se sente confortável?”, indaga o obstetra Marcos Leite.
Quando o neocortex é ativado por essas sensações negativas, libera a produção de adrenalina, que inibe a produção de ocitocina e endorfina – hormônios essenciais para um trabalho de parto tranquilo e saudável. Segundo estudos do obstetra e pesquisador francês Michel Odent, a ocitocina tem uma ligação direta com o sentimento de amor entre mãe e filho. Ela é produzida na hora do parto e no momento da amamentação. O obstetra francês vai muito além: em uma situação onde há a ruptura dessa ligação primordial, haverá uma deficiência dos hormônios apropriados, podendo deixar a criança suscetível ao uso de substâncias aditivas (drogas, álcool), ou mesmo a comportamentos compulsivos, mais tarde na vida, numa tentativa continuada de reequilíbrio do sistema de recompensa.
Cesárea sem traumas
A cesariana, que corresponde a 84% de todos os nascimentos realizados em hospitais privados no país, é fonte de polêmicas no Brasil e no mundo. De um lado está a mulher, que tem o direito de ter o filho da forma que achar mais conveniente, e o obstetra, que não vê problema em realizar cesáreas eletivas (pré-agendadas). Do outro está o fato de que o parto cirúrgico oferece mais riscos para a mãe e para o bebê.
Polêmicas à parte, a cesárea pode ser tratada também com as práticas de humanização. O neonatalogista Carlos Zaconeta descreve que isso já é feito, ainda que raramente: abaixa-se ao máximo o pano que encobre o rosto da mãe, para que ela possa ver o momento do nascimento do próprio filho. Diminui-se a intensidade da luz. O obstetra tira o bebê da barriga sem pressa, membro por membro, suavemente, estimulando o choro ainda durante a sua retirada para que ele consiga expelir o líquido dos pulmões naturalmente. O neonatologista observa a criança, que, se estiver saudável, vai diretamente para o colo da mãe, onde deve ficar por pelo menos 10 minutos, sendo amamentada e confortada.
“Na medida em que você vai fazer uma cesárea, pela motivação que for, você pode optar por uma forma minimamente invasiva. Coisa que em países de primeiro mundo é praxe há mais de 15 anos, e aqui não. A intenção é traumatizar e suturar menos tecidos, manipulando menos camadas no momento do corte. No fim da cirurgia, você sutura só quatro camadas, em vez de sete. Os riscos de sangramento e de lesão de artérias e de nervos é menor”, ressalta o obstetra e ginecologista Thomas Gollop, professor da faculdade de medicina de Jundiaí.
“Estudos mostram que dessa forma a mulher precisará de menos analgésicos, passará menos tempo internada e se recuperará mais rapidamente. Os custos para o hospital também diminuirão”, completa o obstetra, que trabalha com esse método há sete anos.
Mesmo com contornos humanizados, a cesárea não pode ser encarada como a melhor opção para o bebê – salvo em casos especiais, de real indicação médica. “Temos que ter cuidado com essa questão da cesariana humanizada, para que isso não vire um marketing médico e afaste ainda mais as mulheres da possibilidade de um parto normal. A cesariana é uma cirurgia, não é um parto”, argumenta o obstetra Marcos Leite. Como qualquer cirurgia, há uma série de riscos para a mãe e para o bebê. “Ela sangra mais, pode ter um órgão perfurado, machucar o bebê, pegar uma infecção. Fora que aumenta em quatro vezes os riscos de acretismo placentário (quando a placenta não descola) em uma futura gravidez. Também pode diminuir a fertilidade da mulher”, continua o médico.
A opinião, no entanto, não é unânime. “Acho legítimo uma mulher escolher o parto que quer ter, seja um parto normal ou uma cesariana. Não vejo problema nenhum em admitir essa posição”, defende Thomas Gollop.
A cultura da cesariana existe, e tem lá suas razões. Como muito partos normais são realizados em condições ruins para a mulher, o nascimento, que deveria ser tranquilo, torna-se sofrido e complicado, criando essa visão negativa nas mulheres e nos próprios médicos.
Também existem outros motivos, como o fato de que uma cesariana é muito mais simples e lucrativa para o profissional. Um obstetra, que prefere não se identificar, confidencia: “Um convênio paga ao médico, em média, R$ 600 reais por um parto. Muitos profissionais não se dispõem, por tão pouco, a ficar o dia inteiro e a madrugada inteira esperando o momento do nascimento. Preferem marcar as cesarianas eletivas todas para o domingo, por conta dos 30% extras que ganham por ser fim de semana. Passa em uma maternidade no domingo de manhã e veja a fila de grávidas no hall do hospital. É assim que funciona a indústria da cesárea.
A psicóloga Jassanã Batitucci, 32 anos, optou por um parto normal depois de muito estudo e preparação para vencer o medo. Porém, depois de dois dias e três noites em trabalho de parto e sem dilatação, foi encaminhada para uma cesariana. “Preferia ter tido minha filha normalmente. Mas minha cesárea foi um parto lindo, calmo. Pude tocar minha filha, cheirá-la. O importante é o bebê nascer com saúde”, analisa.
Com ou sem dor?
Um estudo realizado em 1994, pelo pesquisador sueco Ulla Waldenstrõm (Experience of childbirth in birth center care – A randomized controlled study), questionou diversas mães, dois meses depois do parto normal, sobre quais eram suas impressões em relação à dor sentida. Aparentemente, muitas encaravam a dor do parto sob uma perspectiva positiva, de realização – bem diferente da dor relacionada a uma doença ou traumatismo.
É exatamente assim que a psicóloga Isabela Crema descreve seu parto, feito em casa e dentro da banheira: “Foi um trabalho de parto muito intenso, mas absolutamente calmo, porque foi em casa, na presença do meu obstetra, da doula, do meu marido e de uma amiga. Quando a gente entrega o controle do parto para o nosso corpo, e desliga a mente, ele flui de uma forma muito natural. Claro que as contrações são muito fortes. Especialmente na fase expulsiva. Mas não tem como associá-la à palavra dor. A dor está ligada a algo negativo. O que eu sentia, por mais forte que fosse, estava ligado a um momento tão especial e mágico que não era assimilado como dor”.
O parto de seu filho aconteceu em uma madrugada, dentro de uma banheira inflável, com música ambiente e apenas as luzes do abajur acesas. “No dia seguinte, a vizinha veio nos cumprimentar. Ela ouviu uns grunhidos e achou que era um casal fazendo sexo, ou algo assim. Depois os gritos foram ficando mais intensos, até que ela ouviu o choro do bebê. Ela disse assim: ‘Eu gritei na hora que nasceu! Vocês ouviram meus gritos de alegria?’”, conta Luiz Carlos Pontual, 31, marido de Isabela e pai de Luan, hoje com 7 meses.
Já a jornalista Marina Simon, 28 anos, conseguiu ter o parto normal, mas precisou de analgesia para lidar com as contrações. O trabalho de parto começou em uma segunda-feira, com contrações leves e espaçadas. O nascimento só aconteceu na sexta-feira, depois de 14 horas de trabalho de parto ativo. Marina, apesar de disposta, foi anestesiada por conta de uma borda de colo que não dilatava. A dor das contrações cessou imediatamente, a borda foi manualmente dilatada e a pequena Maitê nasceu.
“Acho que depois da anestesia acabei perdendo o controle da situação e cheguei a me assustar. Por isso, a presença da doula foi fundamental. Dela e do Thomás (companheiro), que praticamente pariu junto comigo. Doeu muito, mas eu faria tudo de novo. Foi um rito de passagem para uma vida nova. De pai e mãe”, relata.
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