No frágil mundo dos prematuros
A cada ano, 200 mil bebês nascem antes dos nove meses no Brasil.
A proporção de prematuros dobrou em uma década. A maioria sobrevive.
Mas novas pesquisas sugerem que a dor e o estresse na UTI podem deixar seqüelas.
O que fazer para diminuir o sofrimento
Cristiane Segatto, Gisela Anauate, Marcela Buscato (texto)
e Caio Guatelli (fotos)
Confira a seguir um trecho dessa reportagem que pode ser lida na íntegra na edição da revista Época de 21/julho/2008.
A Medicina já consegue fazer sobreviver bebês com até 300 gramas.
Mas novos estudos revelam:
as seqüelas de nascer antes do tempo podem aparecer anos depois.
PROTEÇÃO
Foto: Rebeca nasceu no Hospital das Clínicas, em São Paulo, com pouco mais de 1 quilo.
Foi fotografada no quarto dia de vida. Precisa ficar na incubadora até chegar a 1,5 quilo
O barulho é perturbador. Monitores cardíacos e de oxigênio soltam apitos insistentes, cortando o sussurro das enfermeiras, que caminham entre as incubadoras com agilidade. De vez em quando, uma melodia delicada sai de um móbile colorido. Quando a sala de paredes e piso brancos fica em silêncio, logo um choro estridente quebra a rara monotonia. Assim é o ambiente da Unidade de Cuidados Intensivos Neonatal do Hospital das Clínicas de São Paulo, o maior hospital público do país. ÉPOCA passou 12 horas acompanhando a rotina da equipe e das mães que não saem de perto de seus filhos. Aquela UTI não é lugar para casos fáceis. Bebês prematuros (nascidos antes de 37 semanas de gestação) ou com malformações são encaminhados para lá pela maternidade da instituição e por outros hospitais.
Ana Clara Vilanona da Silva nasceu na 32ª semana de gestação com 2,1 quilos e uma perfuração no intestino. Com poucos dias de vida, passou por uma cirurgia no hospital particular Santa Catarina. Mora na UTI do Hospital das Clínicas desde que o convênio médico parou de cobrir sua estadia na instituição privada. Uma diária na UTI das maternidades privadas custa em média R$ 600, sem contar gastos extras com medicamentos e materiais. Com 2 meses e meio de vida, Ana Clara nunca foi para casa. Abre um berreiro quando a mãe, Camila, de 19 anos, sai de perto. A chupeta que a consola parece imensa em seu rostinho miúdo. É um recurso prosaico, mas tão importante quanto a parafernália tecnológica que nas últimas décadas inverteu as estatísticas da prematuridade. Até os anos 70, 80% dos bebês nascidos com menos de 1.200 gramas morriam. A partir dos anos 80, tornou-se possível salvar 80% deles.
Rebeca Leal Maciel nasceu há duas semanas com pouco mais de 1 quilo – menos da metade do peso de seu irmão gêmeo, Cauê. Ele recebeu alta da UTI e já tem força para mamar no peito. Rebeca chegou à UTI com tubos respiratórios e baixa freqüência cardíaca. No quarto dia de vida, respirava melhor. Recebia soro por meio de um tubo introduzido no pezinho miúdo. Uma sonda na boca transportava o leite da mãe, Jussara Leal dos Santos, de 21 anos. Rebeca só poderá sair da incubadora quando chegar a 1,5 quilo. A partir daí, terá gordura suficiente para se manter aquecida. Por causa do baixo peso, prematuros tendem a perder calor facilmente.
“A batalha da sobrevivência foi vencida. O desafio agora é assegurar o desenvolvimento dessas crianças com qualidade de vida”, diz a psicóloga Maria Beatriz Martins Linhares, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Recursos como chupeta, glicose ou sacarose aplicadas na língua, analgésicos ou sedação são fundamentais para acalmar os bebês e reduzir o impacto da dor e do estresse sofridos nas UTIs. As fontes de sofrimento estão por toda parte: tubos que ligam os pequeninos pulmões aos respiradores; sondas alimentares que chegam até o estômago; cateteres que entram pelas minúsculas veias dos bracinhos, da cabeça e dos pés. Natália Rocha Souza, nascida com 2,7 quilos na 34ª semana de gestação, passou por vários desses procedimentos. Sofreu uma obstrução no intestino que a levou à mesa de cirurgia. Após 71 dias de internação, recupera-se de uma infecção e em breve poderá ir para casa.
Será que o sofrimento vivido numa fase tão inicial do desenvolvimento pode deixar marcas para o resto da vida? Essa é uma das maiores preocupações da neonatologia. Vários estudiosos têm se dedicado a medir a quantidade dos procedimentos dolorosos sofridos nas UTIs e entender as conseqüências disso a longo prazo. No início de julho, foi publicado um importante estudo sobre o assunto no Journal of the American Medical Association (Jama). É a primeira vez que um grupo de pesquisadores registra tudo o que acontece com 430 bebês internados em UTIs. A observação era direta, feita ao lado dos leitos, 24 horas por dia. Os dados foram coletados em 13 hospitais da região de Paris. A idade gestacional média dos bebês era de 33 semanas.
Cada criança sofreu em média 16 procedimentos dolorosos ou estressantes diariamente. Algumas chegaram a enfrentar 62 deles. Os mais comuns foram aspiração de líquidos do nariz ou da traquéia, picadas nos pés para retirar sangue, colocação de tubos gástricos e punção de veias, entre outras manipulações que fazem adultos se contorcer de aflição. O mais impressionante: apenas 2% dos bebês receberam remédios para reduzir a dor durante esses procedimentos. Em outros 18%, a dor e o desconforto foram amenizados com recursos não-farmacológicos, como chupeta ou glicose na língua. Essas medidas simples relaxam os bebês e evitam que eles registrem a dor de forma intensa. A maioria (80%) não recebeu nada. “Os pais precisam cobrar as equipes médicas para que sejam adotadas formas de limitar a intensidade, a freqüência e a duração da dor”, diz o coordenador do estudo, o francês Ricardo Carbajal, do Hospital Infantil Armand Trousseau, em Paris. Essa discussão diz respeito a milhares de brasileiros. A proporção de bebês prematuros cresce em todas as regiões do país. Em 2005, nasceram quase 200 mil prematuros no Brasil – o equivalente a 6% dos nascimentos.
Medidas simples ajudam a diminuir a dor do bebê
O CUIDADO MÃE-CANGURU PODE MINIMIZAR O SOFRIMENTO do PREMATURO
Marcela Buscato
Um dos grandes desafios dos neonatologistas, os médicos que cuidam dos recém-nascidos, é diminuir os sofrimentos dos bebês que estão em uma unidade de terapia intensiva (UTI). As crianças passam em média por 15 procedimentos por dia, entre trocas de curativo, coleta de sangue e punções para pegar uma veia. “Na primeira semana, estima-se que os bebês recebam 240 toques por dia, uma média de 10 por hora”, diz Manoel de Carvalho, da Clínica Perinatal Laranjeira, no Rio de Janeiro. “Os bebês mal conseguem dormir.”
Os médicos tentam diminuir ao máximo a dor causada pelas intervenções, mas também não podem abusar dos analgésicos e anestésicos. Como o cérebro do bebê está em desenvolvimento, há o risco de que a própria medicação cause efeitos adversos. O caso dos prematuros é ainda mais difícil, já que poucos remédios foram testados em crianças tão pequenas. “As empresas farmacêuticas não prestam muita atenção no desenvolvimento de analgésicos e fórmulas específicos para recém-nascidos”, diz o pediatra francês Ricardo Carbajal, do Centro Nacional de Recursos de Luta contra a Dor do Hospital Infantil Armand Trousseau, em Paris. “Esse tipo de medicamento não é um negócio tão lucrativo.”
Mas o próprio Carbajal é um dos grandes defensores de métodos mais naturais para evitar a dor. Um estudo liderado pelo pediatra apontou o uso da chupeta, combinado com a administração de glicose ou sacarose (dois tipos de carboidratos), como um dos métodos mais eficazes para aplacar a dor durante procedimentos simples. Na pesquisa, o desconforto de 150 bebês foi avaliado com base em uma escala que considerava expressão facial, choro e movimento dos braços e das pernas. O zero significava ausência de dor e 10, dor mais forte. Os bebês que tiveram o sangue colhido sem receber nenhum tratamento analgésico tiveram nota 7. Os que tomaram a solução doce tiveram nota 5 e os que usaram chupeta nota 2. Aqueles que usaram chupeta, além de receber a solução de glicose ou sacarose, tiveram apenas 1 ponto na escala. A solução doce estimularia a produção de analgésicos naturais no corpo, que ajudariam a aliviar a dor. A sucção da chupeta, prazerosa para o bebê, ajudaria a desviar a atenção da dor.
O método canguru, aquele em que a criança fica no colo da mãe, também já se mostrou uma boa estratégia. Um estudo publicado no mês passado por Celeste Johnston, da Universidade McGill, no Canadá, apontou que os bebês que tinham o sangue colhido enquanto estavam no colo de suas mães sentiam menos dor e se recuperavam mais rápido do que aqueles cujo sangue havia sido retirado enquanto estavam na incubadora. Em uma escala de dor de até 21 pontos, os bebês do método canguru tiveram uma pontuação de 8,87 e se recuperaram do estresse em menos de 2 minutos – seus batimentos cardíacos e nível de oxigênio voltaram ao mesmo patamar de antes do procedimento. Já os bebês da incubadora pontuaram 10,67 e demoraram mais de 3 minutos para se recuperar, o que pode ser preocupante em bebês tão frágeis e que passam por dezenas de procedimentos por dia.
Médicos do Hospital Regional da Asa Sul, em Brasília, do Hospital das Clínicas e Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, e da Clínica Perinatal, no Rio de Janeiro, afirmam que esse tipo de medida está sendo cada vez mais adotado nas unidades de terapia intensiva. “O importante é planejar quais exames precisam ser feitos e fazer vários de uma só vez para não incomodar tanto os bebês”, afirma a pediatra Alice Deutsch, coordenadora médica da unidade neonatal do Hospital Israelita Albert Einstein.
Porém, um levantamento feito pela pediatra Aurimery Gomes Chermont, da Universidade Federal do Pará, mostra que a preocupação em aliviar a dor dos bebês ainda não está bem difundida. Aurimery entrevistou 104 médicos de sete UTIs e 14 hospitais de Belém. Todos disseram acreditar que os recém-nascidos podem sentir dor, embora apenas 10% afirmem dar analgésicos antes de espetar algum vaso. Entre 50% e 75% disseram não aplicar nenhuma medicação para aliviar a dor dos bebês mesmo após cirurgias abdominais.
“Médicos e enfermeiras precisam de cursos específicos para aprender a lidar com a dor do bebê. Falta informação”, afirma a neonatologista Martha Vieira, do Hospital Regional da Asa Sul, em Brasília. “As enfermeiras são muito importantes porque são elas que realizam a maior parte dos procedimentos e acompanham os recém-nascidos o tempo todo.” Para a pediatra Sílvia Maria de Macedo Barbosa, do Instituto da Criança, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, os cursos de medicina não preparam os médicos para lidar com a dor. “Toda faculdade deveria ter uma disciplina obrigatória sobre esse assunto”, diz Sílvia. “Muitos médicos nem conhecem as escalas para avaliar a intensidade da dor.”
Essas escalas são bons termômetros de quanto um bebê está sofrendo. Se para um adulto, dono de um amplo vocabulário, já é difícil contar para o médico onde e o quanto dói, imagine para um recém-nascido. No caso dos bebês que nascem com mais de 37 semanas, os médicos costumam se valer das expressões faciais, da intensidade do choro e dos movimentos de braços e pernas para avaliar a dor. É dessa maneira que eles podem decidir como tratá-la: se é tão forte que seja necessário aplicar um analgésico ou se o desconforto é pequeno e passageiro. Nos prematuros, muitas vezes tão miudinhos que não podem nem chorar, os neonatologistas também usam outros indicadores. Medem a freqüência cardíaca, a pressão arterial e o nível de oxigenação. Mas uma pesquisa publicada no mês passado mostrou que mesmo usando escalas de dor os médicos podem estar subestimando o desconforto dos bebês. Rebeccah Slater, da University College of London, monitorou o cérebro de bebês enquanto eles eram submetidos a uma picada de agulha. Treze não choraram em 33 ocasiões, mas o monitoramento do cérebro de dez bebês apresentava um padrão de atividade correspondente ao de dor.
Os pais de bebês que tiveram de ficar na UTI costumam se preocupar se esse período traumático terá impacto no futuro de seus filhos. Perguntam-se se a dor ao qual eles foram expostos acarretará em problemas de aprendizagem e de comportamento, como indicam algumas pesquisas. A ciência ainda não consegue responder quanta dor é preciso sentir para que ela possa influenciar o organismo e ter efeitos a longo prazo. Mas para a pediatra Ruth Guinsburg, professora da Universidade Federal de São Paulo, os pais devem pensar que a mesma plasticidade cerebral, que moldada pela dor talvez possa trazer problemas no futuro, também pode favorecer na recuperação dos bebês. “Essas crianças sempre vão receber um carinho especial. E carinho é mais forte do que as estatísticas”, afirma Ruth. “Os números valem para grupos grandes, não para pessoas.”
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