
ATENDIMENTOS DE LACTAÇÃO SOB A PERSPECTIVA LGBTQIA+
“MAIS COR, POR FAVOR!”
A população LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, queer e questionando, intersexo, assexual e demais gêneros e orientações sexuais) encontra-se desamparada quanto ao atendimento de seus direitos, incluindo o acesso aos espaços de saúde. A partir da iminente necessidade de formação de profissionais de saúde preparados para atender essa população, esse trabalho faz uma alusão a um modelo de cuidado inclusivo e integral, de maneira que deixemos as portas abertas às novas configurações familiares.
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo (TRANS MURDER MONITORING, 2021), mesmo reconhecendo o absolutismo desse dado, o fato é que milhões de vidas são tiradas pelo simples motivo de não adequação de gênero e/ou identidade sexual. Aqui, uma pessoa LGBT é agredida a cada hora (GGB, 2020) e a expectativa de vida das travestis e transexuais é de 35 anos (ANTRA, 2018), mostrando a vulnerabilidade dessas pessoas e tornando ainda mais importante nosso papel no acolhimento e apoio a sua luta dentro de nossos consultórios e hospitais.
Famílias LGBT, assim como outras, precisam de acesso a suportes tradicionais de lactação, com escuta empática, consideração, respeito, liberdade de expressão, atendimento atualizado e competência.
SUGESTÃO DE MODELO DE ATENDIMENTO INCLUSIVO PARA FAMÍLIAS LGBTQIA+ EM LACTAÇÃO
1) Conhecer terminologias próprias referentes a identidades de gênero (cis ou transgênero), expressões de gênero (feminino, masculino, não binário, andrógino), sexos biológicos (feminino, masculino, intersexo e nulo), orientações sexuais (homossexual, bissexual, heterossexual, pansexual, assexual) e temáticas específicas (p. ex.: “chestfeeding” = dar o peito ou amamentar no tórax). Ter consciência da fluidez desses termos, mantendo-nos atualizados a respeito.
2) Conhecer as particularidades médicas e sociais dessa população (p.ex.: homens gestantes e lactantes e suas implicações, saúde reprodutiva, tratamentos hormonais)
3) Usar o pronome (ele/dele, ela/dela), nome (registro/social, caso escolham o social não precisamos questioná-los sobre seus nomes de registro) ou papel parental (“Como gostaria que seu bebê te chamasse?”) escolhidos pela pessoa ao se referir a ela. Não pressupor o gênero da pessoa pela aparência, somente a própria pessoa pode lhe dar essa informação (“Olá! Como estão? Me chamo Ana e podem se referir a mim com o pronome feminino. E com vocês? Que pronome devo usar?”). Alguns homens trans podem parecer mulheres, enquanto algumas pessoas que podem parecer muito masculinas, se identificam como “mulher”. Erros podem ocorrer, mas devemos nos desculpar, após corrigi-los.
4) Colocar o pronome que gostaria que fosse usado para você ao se apresentar, no início dos atendimentos ou escritos após o seu nome no WhatsApp, Instagram, formulários (exemplo: Ana C. Lorga Salis – ela/dela). Essa pode ser uma maneira virtual de apoio e de se mostrar aberto a esse tipo de atendimento.
5) Treinar toda equipe para um atendimento inclusivo e respeitoso (atendentes do estacionamento, secretárias, assistentes, enfermeiros, médicos). O membro da equipe que tem o primeiro contato com clientes potenciais deve estar ciente de que algumas pessoas procuram nossos atendimentos de lactação, não se identificam como “mulheres” e que podem preferir ser tratados por nomes diferentes dos nomes que aparecem em seus cartões de saúde.
6) Durante atendimento a essa população evite usar termos do tipo “mulheres”, “mães”, “materna”, “Senhora” e pratique falar sobre “pessoas grávidas”, “cuidadores”, “lactante”, “leite humano”, “gestante”.
7) Quando se referir ao público em geral, usar frases do tipo: – “Boa noite a todas as pessoas aqui presentes!”, “A pessoa (indivíduo) que amamenta…”, “Todas as pessoas que gestam…”, “Dar o peito…”, “O leite humano…”. E talvez pensarmos em incluir os homens que amamentam, em nossas campanhas mundiais de amamentação, mudando termos do tipo “Semana Mundial de Aleitamento Materno” para ‘Semana Mundial do Aleitamento Humano”.
8) Ter formulários e prontuários com linguagem inclusiva (“responsáveis”, “pessoa que amamenta”) e pulseiras de identificação hospitalares adequadas ao gênero e papel parental informado pelas pessoas que irão vesti-las.
9) Certificar-se de que todas as perguntas são necessárias para um atendimento adequado. Explicar por que tais perguntas são relevantes. Pessoas trans são frequentemente sujeitas a perguntas desnecessárias de curiosos.
10) Não pressupor que a pessoa deseja amamentar. É sempre preferível perguntar, usando perguntas abertas (“Como estão pensando em alimentar o bebê?”, “O que sabem sobre indução da lactação?”), sobretudo homens trans, uma vez que a decisão de não amamentar pode ser baseada em razões fisiológicas ou de saúde mental. Caso optem por não amamentar, oferecer informações sobre cessação de produção de leite.
11) Confidencialidade pode ser fundamental para essa população. Perguntar sobre como gostariam que essas questões fossem tratadas, uma vez que podem querer um tratamento diferente quando em ambientes não privados.
12) Ornamentar o espaço de saúde com pelo menos um item capaz de mostrar que somos seus apoiadores e capazes de atendê-los (p.ex.: almofada arco-íris, adesivos coloridos). Essa é uma forma sutil e impactante de reconhecê-los. Uma simples caneca arco-íris pode tornar o ambiente mais receptivo.
13) Colocar placas inclusivas nas portas dos banheiros dos estabelecimentos de saúde (“unissex”, “todos os gêneros”) ou deixá-las sem placa de referência ao sexo (“banheiro”). O acesso ao banheiro costuma ser muito estressante para quem não se encaixa perfeitamente nas normas de gênero masculino ou feminino.
14) Evitar suposições relacionadas aos parceiros/as do/a paciente. Homens e mulheres trans, assim como todas as pessoas, podem ter qualquer orientação sexual (por exemplo: mulher trans lésbica que se relaciona com outra mulher cis ou trans).
15) Estar ciente de que homens trans podem se sentir desconfortáveis no exame físico da mama. Usar a palavra “tórax”, ao invés de “mama”, e pedir licença antes de tocá-los pode minimizar seu incômodo.
16) Tratar de todos os assuntos necessários com naturalidade e respeito, nunca de maneira pejorativa.
17) Entender que amamentação cruzada acontece somente quando o bebê é amamentado por uma pessoa que não ocupa o papel parental naquela família.
18) Dar igual atenção, direitos e importância à mãe não gestante (no caso de duas mães). Essas mães costumam se sentir invisíveis e muitas vezes são tratadas como pai.
19) Tal como acontece com todas as pessoas, realizar o rastreio de sintomas de ansiedade e depressão. A saúde mental pode ser um tema de maior destaque para essa população.
20) Estar ciente sobre sentimentos negativos ou desconfortos, nossos ou de funcionários das instituições de saúde, relacionado à essas pessoas. Somente após reconhecer nossos preconceitos, será possível desconstruí-los.
21) Oferecer uma lista de grupos de apoio, assim como de profissionais “LGBT apoiadores”.
22) Conhecer leis e direitos já conquistados, para um melhor apoio a essa população.
Sigamos aprendendo e ensinando para que cada dia mais estejamos preparados para respeitar, não julgar ou descriminalizar e responder as demandas de saúde de todas as pessoas. VAMOS COLORIR NOSSOS ATENDIMENTOS, POLÍTICAS PÚBLICAS, REDES SOCIAIS, CAMPANHAS E BIBLIOTECAS. “MAIS COR, POR FAVOR!”
REFERÊNCIAS
ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, disponível em www.antrabrasil.org.
ASSOCIATION OF ONTARIO MIDWIVES, Tip Sheet – Providing Care to “Trans Men and All Masculine Spectrum” Clients, 2016, disponível em www.genderminorities.com.
CIASCA, Saulo, et al. Saúde LGBTQIA+: práticas de cuidado transdisciplinar. Editores: Saulo Vito Ciasca, Andrea Hercowitz, Ademir Lopes Junior. Santana de Paraíba (SP). Manole, 2021.
FERRI, Rita, et al. Lactation Care for Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus Patients. Breastfeed Med. 5(15): 284-293. Maio de 2020.
GGB – Levantamento Grupo Gay da Bahia, 2020. Disponível em www.ggb.org.br.
GRANT Jaime, et al. Injustice at Every Turn: A Report of the National Transgender Discrimination Survey. Washington: National Center for Transgender Equality and National Gay and Lesbian Task Force, 2011. Disponível em https://transequality.org/sites/default/files/docs/resource/NTDS_Report.pd
“MAIS COR, POR FAVOR” – nome de programa do canal GNT, desde janeiro de 2016.
REISMAN Tamar, Goldstein Zil. Case report: Induced lactation in a transgender woman. Transgender Health, Nova Iorque, 3: 24–26. Janeiro de 2018
TASKER, Fiona. Lesbian Mothers, Gay Fathers, and Their Children: a Review. Journal of Developmental & Behavioral Pediatrics, Londres, 26:224–240. Junho de 2005.
TRANS MURDER MONITORING, novembro de 2021. Disponível em www.transrespect.org.
*A Pediatra Ana Carolina Lorga Salis é pós-graduada em Aleitamento Materno pelo Instituto Passo 1, polo Piracicaba. [email protected] Instagram: @SOMOSAMAMENTACAO
Baixe na nossa Biblioteca digital a “Cartilha Atendimento Inclusivo de Lactação” em https://www.slideshare.net/Marcusrenato/como-acolher-as-pessoas-lgbtqia-na-consulta-de-lactao
Vamos nos encontrar no ENAM/ENACS online, dia 4 de dezembro?
Curso “Amamentação: feminismo, negritude e pessoas LGBTQIA+”