Aleitamento materno e cáriedo lactente e do pré-escolar: o mito que sobrevive
Breastfeeding and early childhood caries: a myth that survives
Nilza M. E. Ribeiro, Manoel A. S. Ribeiro
doi:10.2223/JPED.1945
Prezado Editor,
O artigo de revisão de Losso et al., recentemente publicado neste respeitado periódico, propôs-se a informar os fatores de risco para a cárie em pacientes menores de 6 anos1. Lemos com muito interesse o manuscrito, uma vez que fomos citados em suas referências2, e comentaremos alguns aspectos que achamos pertinentes.
O primeiro é sobre a denominação de cárie para essa faixa etária. A expressão early childhood caries, adotada pela Academia Americana de Odontopediatria (American Academy of Pediatric Dentistry, AAPD), busca enfatizar a presença da doença cárie na dentadura decídua nos 6 primeiros anos de vida. A tradução de Losso et al.1, assim como de outros autores brasileiros, para esta expressão como “cárie precoce na infância” é inadequada, traz confusão quanto ao seu correto entendimento e não tem nenhuma relação com a conceituação proposta pela AAPD.
Como o adjetivo “precoce” significa algo que é prematuro, que se produz antes do tempo normal ou que é formado antes da idade esperada, a adoção da nomenclatura “cárie precoce na infância” permite interpretar erroneamente que a cárie na dentição decídua é uma doença que se desenvolve em idade inferior à habitual. A confusão está no real significado da expressão early childhood, a qual designa o estágio de desenvolvimento humano que compreende os primeiros anos de vida, ou seja, o lactente e o pré-escolar. Por isso, a denominação “cárie do lactente e do pré-escolar (CLPE)”, adotada pela primeira vez em literatura de língua portuguesa em nosso artigo2, é a versão mais exata e adequada, pois define, de forma inequívoca, a presença dessa patologia em crianças de até 6 anos de idade.
O segundo aspecto importante é que Losso et al. afirmam que nosso estudo teria relatado informações conflitantes sobre a cariogenicidade do leite materno1. Essa colocação não está correta, e a principal conclusão foi omitida por esses autores. Em nossa revisão sobre a relação entre o aleitamento materno e a CLPE, concluímos que não há evidências científicas que comprovem que o leite materno está associado com o surgimento de cárie. Complementamos afirmando que essa relação é complexa e confundida por muitas variáveis, principalmente infecção por Streptococcus mutans, hipoplasia do esmalte, ingestão de açúcares, em suas mais variadas formas, e condições sociais, representadas pela educação e nível socioeconômico dos pais2. Com muito orgulho, nosso artigo foi considerado recentemente por White3 um dos cinco estudos com evidências científicas relevantes sobre a associação entre aleitamento materno e CLPE. Nesse estudo, White3 mostrou claramente nossa conclusão e listou as possíveis limitações da nossa revisão crítica. A autora concluiu que, em razão dos provados benefícios do aleitamento materno e da falta de evidências consistentes de sua relação com o surgimento da CLPE, os odontologistas devem apoiar as atuais recomendações para o aleitamento materno. A autora também recomenda que se dê ênfase à promoção de boas práticas de higiene dental a partir da erupção do primeiro dente e que os pais sejam aconselhados a reduzir a frequência do consumo de alimentos e bebidas que contenham açúcar pelos lactentes e pré-escolares3.
O terceiro comentário diz respeito à grande preocupação de Losso et al. ao tentar enfatizar a posição da AAPD em desestimular o aleitamento materno sob livre demanda após o surgimento do primeiro dente decíduo1. Os autores, apesar de realizarem uma revisão bibliográfica dos últimos 25 anos, desconsideram as atuais evidências científicas que discordam dessa posição, incluindo grande parte das referências de nosso estudo2 e o estudo de White3. Além disso, verificamos equívocos importantes e primários feitos por Losso et al. em relação ao estudo de Plutzer & Spencer4, o que prejudica as recomendações sugeridas por estes sobre o aleitamento materno. Segundo Losso et al., os achados de Plutzer & Spencer embasam as recomendações da AAPD4. Entretanto, ao analisarmos esse estudo4, observamos um erro importante de interpretação. Plutzer & Spencer testaram a eficácia de um programa de promoção de saúde oral em gestantes nulíparas com o objetivo de reduzir a prevalência de CLPE em seus filhos aos 18 meses de idade. Os autores observaram que as crianças cujas mães receberam orientações sobre saúde dental durante a gestação e aos 6 e 12 meses de idade da criança tiveram a prevalência de CLPE reduzida em quatro vezes. Em nenhuma parte do estudo de Plutzer & Spencer foram referidas as recomendações da AAPD4. Pelo contrário, as orientações nutricionais adotadas pelos autores foram baseadas em recomendações oficiais do governo australiano, as quais estimulam manter o aleitamento materno pelo menos até 1 ano de idade e não sugerem limitá-lo sob qualquer pretexto, devido a sua baixa prevalência aos 6 meses (aproximadamente 20%)5.
Além disso, recentemente outro estudo confirmou que o leite materno, além de não ser cariogênico, é um elemento protetor no surgimento de cáries6. Niemi et al. demonstraram que compostos do leite humano têm a capacidade de inibir in vitro a adesão do S. mutans em cristais de hidroxiapatita6.
Diante das evidências científicas atuais, que sustentam que o leite materno não é cariogênico, discordamos das conclusões dos autores quanto a qualquer limitação ao aleitamento materno em função da saúde oral pediátrica. A posição de Losso et al.1 confirma outra informação relatada em nossa revisão crítica: apesar de não haver embasamento científico comprovando a associação entre aleitamento materno e cárie, muitos profissionais, tal como esses autores, ainda duvidam da ausência de cariogenicidade do leite humano, perpetuando o mito que se originou dessa associação.
Ressaltamos que nossos apontamentos não tiram o mérito do restante do artigo e esperamos ter contribuído com nossas observações.
Referências
1. Losso EM, Tavares MC, da Silva JY, Urban CA. Severe early childhood caries: an integral approach. J Pediatr (Rio J). 2009;85:295-300. [crossref]
2. Ribeiro NM, Ribeiro MA. Breastfeeding and early childhood caries: a critical review. J Pediatr (Rio J). 2004;80:S199-210. [pubmed/open access] [crossref]
3. White V. Breastfeeding and the risk of early childhood caries. Evid Based Dent. 2008;9:86-8. [pubmed/open access] [crossref]
4. Plutzer K, Spencer AJ. Efficacy of an oral health promotion intervention in the prevention of early childhood caries. Community Dent Oral Epidemiol. 2008;36:335-46. [pubmed/open access] [crossref]
5. Jackson M. Food for toddlers. The information leaflet based on Child and Youth Health’s ‘Feeding Babies and Young Children’ and the National Health and Medical Research Council’s ‘Dietary Guidance for Children and Adolescents’. Adelaide, SA: Anti-Cancer Foundation South Australia, 1999.
6. Niemi LD, Hernell O, Johansson I. Human milk compounds inhibiting adhesion of mutans streptococci to host ligand-coated hydroxyapatite in vitro. Caries Res. 2009;43:171-8.
[pubmed/open access] [crossref]